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Cristianismo e cultura pop japonesa

A trajetória do pensamento cristão no Japão e sua presença na indústria do entretenimento local.

Jesus Cristo em "My last day". Abaixo: Ultra Brothers em cena de Ultraman Ace e Superbook.

O Cristianismo, mais precisamente o Catolicismo, é a terceira maior religião em atividade no Japão, um país que segue majoritariamente o Budismo, o Xintoísmo ou uma mistura de ambos. Na verdade, o povo japonês não é religioso, sendo mais supersticioso e com uma posição de respeito às religiões tradicionais, especialmente em suas datas comemorativas.


De presença tímida no Japão, o Catolicismo tem lá uma história marcada por heroísmo, resiliência e uma tragédia jamais superada.


TRAJETÓRIA DE FÉ E CORAGEM


Os portugueses chegaram ao Japão em 1543 e a Igreja Católica começou a atuar em seu território oficialmente em 1549, através de padres jesuítas portugueses, espanhóis e italianos, liderados por São Francisco Xavier (1506~1552). [Nota: Há um debate sobre registros arqueológicos que indicam contatos com cristãos assírios no século II, mas é um tema pouco desenvolvido entre pesquisadores.]

A acolhida da população foi muito boa, e em pouco tempo havia cerca de 300 mil católicos no Japão, sendo que a região de Nagasaki era a que concentrava o maior número de convertidos. Mas era o período de unificação do país e as perseguições logo começaram, com uma grande escalada de violência contra qualquer tipo de influência estrangeira, o que incluía a religião. Isso provocou a expulsão de sacerdotes do país e a execução de fieis que se recusassem a renegar sua fé.


Em 1597, 26 pessoas, entre sacerdotes e pessoas do povo, foram crucificados de uma só vez, sendo depois considerados mártires da fé cristã. No total, o Japão possui mais de 200 mártires reconhecidos pelo Vaticano, com 20 santos; no caso, os japoneses do grupo de 26 crucificados por ordem do senhor feudal Hideyoshi Toyotomi (1537~1598), o unificador do Japão.

Uma representação de época sobre as pregações de São Francisco Xavier no Japão (Autor desconhecido)

No século XVII, o catolicismo foi oficialmente proibido pelo governo do shogunato Tokugawa e uma violenta repressão teve início. Isso motivou revoltas, como a grande rebelião liderada por Amakusa Shirô, e o surgimento de comunidades secretas, as Kakure Kirishitan (ou "Cristãos Escondidos"). Essas comunidades, que uniram o cristianismo a tradições religiosas locais, existem até hoje, não tendo vínculos com o Vaticano.


O período da Restauração Meiji (1868~1912), que acabou com a era do shogunato e devolveu o poder máximo à figura do imperador, abriu o caminho para a modernização e retomada do contato do Japão com o ocidente, permitindo ao volta do cristianismo como religião reconhecida e legalizada no país. A escalada militar que se seguiu e desembocou na participação japonesa na Segunda Guerra Mundial não deu muito espaço para a expansão em território japonês do Cristianismo, mas ele continuou conquistando fiéis pelo país.


O bombardeio nuclear em Nagasaki, ocorrido em 9 de agosto de 1945, destruiu a estrutura do Catolicismo no Japão. A maior parte dos católicos japoneses se concentrava na cidade, que abrigava um Seminário para formação de novos padres. Como resultado da tragédia, o Cristianismo no Japão nunca mais se recuperou, apesar de Nagasaki continuar sendo a província com o maior número de cristãos no país.

Atualmente, estima-se que o Japão, cuja população é de mais de 125 milhões de habitantes, tenha mais de 1.900.000 cristãos, em um levantamento governamental divulgado em 2019. A pesquisa não considerou de modo preciso as divisões entre católicos (o ramo mais tradicional e conhecido), protestantes e ortodoxos (sabidamente o menor grupo). Há mais de 800 igrejas católicas pelo país, que até celebram muitos casamentos religiosos, mas em geral são apenas casais atraídos pelo glamour ocidental. Entre o grande número de brasileiros morando e trabalhando no país, há uma forte presença de comunidades evangélicas.


Há também a questão do Natal, festejado pela maior parte da mídia e da população japonesa como um similar ao Dia dos Namorados, sem nenhuma menção ao nascimento de Cristo. Ainda assim, o país possui pelo menos um grande escritor católico, o renomado Shusaku Endo (1923~1996), além de uma certa presença na cultura pop, conforme veremos a seguir.


TSUBURAYA: SUPER-HERÓIS E SÍMBOLOS CRISTÃOS


O renomado diretor de efeitos especiais dos primeiros filmes de Godzilla, Eiji Tsuburaya (1901~1970), converteu-se ao catolicismo já adulto, por influência de sua esposa. Quando criou seu próprio estúdio, a Tsuburaya Productions, o diretor acolheu pelo menos dois cristãos em sua equipe: os então jovens escritores Shinichi Ichikawa (1941~2011) e Shozo Uehara (1937~2020). E havia também o talentoso Hajime Tsuburaya (1931~1973), filho mais velho de Eiji, diretamente responsável pela direção de vários episódios das primeiras séries do estúdio. A produtora criou a franquia Ultraman e seu Universo Ultra, incluindo em algumas de suas primeiras obras várias referências a elementos cristãos.

A crucificação de Ultra Seven.

No clássico Ultra Seven (1967), um dos momentos favoritos dos fãs é o arco duplo "O Pior dos Inimigos" (eps. 39 e 40), no qual o herói é preso em uma cruz de cristal pelos aliens Guts.


A imagem do herói crucificado não apenas remete à imagem de Jesus Cristo, mas também alude à história dos mártires cristãos japoneses. O arco foi escrito por Keisuke Fujikawa que, mesmo que não fosse cristão, foi influenciado pelo ambiente da empresa e seu chefe. Várias outras referências foram espalhadas em vários episódios de diversas produções da Tsuburaya.


Em uma referência ainda mais forte, os Irmãos Ultra são crucificados no planeta Golgotha (alusão ao local da crucificação de Jesus Cristo), no arco duplo (eps. 13 e 14) que ainda apresenta o monstro Baraba (derivado do nome do criminoso Barrabás, personagem bíblico). Isso foi mostrado na série Ultraman Ace (1972), com roteiro de Shigemitsu Taguchi e Shinichi Ichikawa.


OUTRAS MARCAS NA CULTURA POP

Na série Lion Man (1973), ambientada em algum ponto do Japão feudal, o herói Dan Shimaru mostrava ideais incompatíveis com os guerreiros de seu tempo. Quando encontra um jovem ninja decidido a se lançar num ataque suicida para vingar seu clã, o herói tenta impedir o sacrifício.


Os companheiros do rapaz respeitaram seu propósito de morrer por vingança, mas Lion Man tenta impedir o ato a todo custo, chegando a dizer que não há dádiva maior que a vida. O discurso parecia típico de um pensamento cristão, em contraste com a cultura samurai vigente.


Em 1981, surgiu a série em animê Superbook (ou "Timebook"), no qual duas crianças encontram uma Bíblia mágica. Através do livro, elas viajam no tempo para testemunharem acontecimentos da História do Cristianismo.

Superbook

Desenho cheio de ensinamentos morais e espirituais, Superbook foi produzido pela Tatsunoko Productions, o mesmo estúdio de Speed Racer, O Judoca, Zillion e muitas outras obras famosas. Foram duas temporadas de 26 episódios cada, mais a série derivada The Flying House, de 1982, que contou com 52 episódios, divididos em duas fases. Em 2011, começou um reboot da obra em CG, desta vez sendo um projeto americano licenciado, com animação feita entre estúdios da China e Coréia do Sul. Tanto a série original quanto a versão moderna já foram exibidas no Brasil.


Em Jaspion (1985), série quase toda escrita pelo já citado Shozo Uehara, a simbologia cristã é usada ostensivamente. O mestre do herói, o sábio alienígena Edin, decifra partes da Bíblia Galática, onde é profetizado o surgimento de Satan Goss, chamado por Jaspion de "Satanás Espacial".

O Cavaleiro Hyoga de Cisne.

No cultuado animê clássico Os Cavaleiros do Zodíaco (1986), o personagem Hyoga de Cisne carregava consigo um Rosário da Cruz do Norte, que lhe foi dado de presente por sua falecida mãe. Elemento de devoção tradicional, o rosário possui contas ou nós que correspondem ao número de orações que o fiel recita enquanto contempla passagens da vida de Cristo e da Virgem Maria. Não se fala nada sobre esse rosário além do valor sentimental para o personagem (que chega a ser salvo milagrosamente pela peça), mas o objeto foi retratado visualmente com fidelidade.


No igualmente clássico seriado Jiraiya - O Incrível Ninja (1988), o aliado Barão Owl se apresenta como um cristão devoto, trajando um uniforme inspirado nos cavaleiros dos movimentos militares cristãos conhecidos como Cruzadas. Suas atitudes de guerreiro nobre e honrado conquistam a confiança do herói Toha e de seu pai adotivo, o sábio Tetsuzan Yamashi. De rival, torna-se um dos mais importantes aliados do herói.

Jiraiya e o Barão Owl.

Um dos casos mais célebres registrados na cultura pop japonesa envolvendo a perseguição aos cristãos durante o período do Shogunato Tokugawa foi lembrado no mangá e animê Rurouni Kenshin ~ Samurai X, sucesso nos anos 90. Nele, aparece o personagem Shôgo Amakusa, inspirado na figura real de um jovem devoto que se levantou contra a tiraria de seu senhor feudal.


ADAPTANDO AS ESCRITURAS

Em seus últimos anos de vida, Osamu Tezuka (1928~1989), considerado o "Deus do Mangá", estava empenhado em contar em animê as histórias bíblicas, graças a um pedido do Vaticano, na época conduzido pelo Papa João Paulo II (1920~2005).


Tezuka escreveu e supervisionou a produção de um episódio-piloto, que foi muito bem recebido. Teve início o planejamento de uma série de TV, mas Tezuka faleceu antes de conseguir dar andamento ao trabalho. A produção, que se iniciou nos anos 80 e arrastou-se por anos, só foi concluída e distribuída pela Tezuka Productions bem depois da morte do autor. O resultado foi Tezuka Osamu no Kyuyaku Seisho Monogatari (ou "No princípio: A História do Antigo Testamento, de Osamu Tezuka") e ganhou o título internacional de In The Beginning: The Bible Stories.

A visão de Tezuka sobre as histórias bíblicas.

O animê foi exibido no Japão somente em 1997, com 26 episódios. O autor já havia produzido uma versão sobre a história de Buda e era agnóstico, mas realizou profunda pesquisa para criar uma obra respeitosa com a religião e que pudesse depois mostrar ao Papa. Acabou se tornando uma obra obscura ligada ao legado de Tezuka.


Em 2011, surgiu o curta-metragem em animê My Last Day, idealizado pelo projeto americano Jesus Film Project, criado pelo grupo CRU - Campus Crusade for Christ e produzido pelo renomado STUDIO 4ºC, que já desenvolveu diversos trabalhos sob encomenda para o ocidente, como Batman: Gothan Knight (2008) e a sofisticada versão 2011 de Thundercats.


Influenciado pelo filme A Paixão de Cristo (2004), de Mel Gibson, o animê mostra com crueza a violenta execução de Jesus pelos romanos. A novidade ficou no foco narrativo, centrado em um dos dois criminosos que foram crucificados na mesma ocasião.


Arrependido e demonstrando compaixão pelo homem que agonizava ao seu lado mesmo sem ter cometido crime, o homem ouve de Cristo a promessa de que logo estaria com ele no Paraíso. Em pouco mais de 9 minutos carregados de drama e emoção, a síntese da mensagem de redenção e salvação espiritual do Cristianismo.


Os exemplos de elementos cristãos espalhados em obras japonesas são inúmeros. Em muitos casos, tais elementos dão apenas um toque exótico para o público local, somente uma referência cultural estrangeira. Em outros, refletem uma consciência religiosa cristã despertada em autores nascidos em um país aparentemente pouco influenciado pelo cristianismo, apesar de uma longa e marcante história de testemunhos de fé.


Assista agora: MY LAST DAY ~ Jesus Film Project (Completo) (Nota: Há versões em português no YouTube, mas optamos por mostrar aqui o vídeo do canal oficial, pois outros podem ser tirados do ar.)

Alexandre Nagado


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