Uma entrevista exclusiva com a pioneira na pesquisa acadêmica sobre mangá no Brasil e no mundo.
A professora Sonia M. Bibe Luyten é Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações da Universidade de São Paulo, título conquistado com uma tese sobre mangá. Foi professora do Departamento de Jornalismo e Comunicações da ECA/USP (1972-1984), professora convidada da Universidade de Estudos Estrangeiros de Osaka e Tóquio (Japão, 1984-1990), professora da Universidade Real de Utrecht (Holanda, 1993-1996) e professora convidada da Universidade de Poitiers (França, 1998-1999). Também foi professora e coordenadora do curso de Pós-graduação de Comunicação da Universidade Católica de Santos, lecionando uma cadeira sobre Histórias em Quadrinhos.
Sua tese deu origem ao pioneiro livro Mangá - O Poder dos Quadrinhos Japoneses (Ed. Estação Liberdade, 1991), atualmente em sua terceira edição (Ed. Hedra, 2000). Também é autora dos livros Comunicação e Aculturação (Ed. Loyola, 1981), Histórias em Quadrinhos – Leitura Crítica (Edições Paulinas, 1984), O que é Histórias em Quadrinhos (Ed. Brasiliense, 1985), organizadora do livro Cultura Pop japonesa: Animê e Mangá (Hedra, 2000) e coautora de Efeito HQ: Uma Prática Pedagógica (2017), livro on-line escrito em conjunto com José Alberto Lovetro (JAL).
Ao longo de uma carreira extremamente produtiva, Sonia Luyten obteve vários prêmios por sua pesquisa em Histórias em Quadrinhos, a destacar: HQ Mix em 1988, 1991, 1999 (São Paulo – Brasil), MangaCon em 2001. (São Paulo- Brasil), Prêmio Romano Calise, em Lucca (Itália) em 1990, Prêmio Ângelo Agostini – Mestre dos Quadrinhos em 2005, Prêmio Cátedra UNESCO/Metodista de Comunicação- em 2006 e Honraria do Governo Japonês pela atuação na divulgação e pesquisa da Cultura Pop Japonesa, em 2008.
Foi professora do primeiro curso universitário de Histórias em Quadrinhos no Brasil, com início em 1972 na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e do primeiro núcleo de estudos sobre mangá no Brasil na década de 1970 na ECA/USP. Sonia também foi uma das idealizadoras da ABRADEMI – Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá e Ilustrações, entidade fundada em 1984.
A veterana pesquisadora também já foi presidente do Troféu HQMIX, que faz a premiação dos melhores artistas nas áreas de Histórias em Quadrinhos e Humor Gráfico. Atualmente é presidente da Comissão de Teses do Troféu HQ MIX (para pesquisas acadêmicas) e membro da ASPAS (Associação de Pesquisadores em Arte Sequencial ).
Sonia Luyten não é uma pesquisadora acadêmica puramente teórica. Ela viveu um bom tempo no Japão, conviveu na sociedade, conheceu pessoas do meio acadêmico, estudantil, autores de mangá, editores... Conseguiu enxergar a sociedade japonesa e seu produto cultural mais famoso não apenas lendo no original, mas convivendo e descobrindo como se vê, como se retrata e como reage uma sociedade que possui uma mentalidade, referenciais e paradigmas diferentes do ocidente.
Por isso, é uma honra e uma grande alegria poder registrar suas impressões, memórias e opiniões aqui no Sushi POP. Conversar com ela é sempre uma aula fascinante. E sem mais delongas, vamos à entrevista:
1) Nagado: Quando e como foi seu primeiro contato com o mangá? Você teve algum contato anterior com a cultura e o idioma japonês?
Sonia Luyten: Sempre tive contato com nisseis desde a infância. Nos anos 1960 meu pai já dizia que o japonês seria a língua do futuro. E foi estudar o básico na Aliança Cultural Brasil-Japão, em São Paulo. Mais tarde, também fui fazer o curso e até hoje tenho esses livros.
Uma vez na pós-graduação na Escola de Comunicação e Artes da USP fiz uma matéria em 1979 com a Professora Francesca Cavalli e aprendi como o chanoyu (ou "chadô", a cerimônia do chá) pode compartilhar a cultura japonesa em vários aspectos: língua, culinária, cerâmica e arranjos florais, a chabana. [Nota: Chabana é um tipo de arranjo floral tradicional que ornamenta a cerimônia do chá.]
No bairro da Liberdade, sempre ia a restaurantes japoneses e, uma vez visitando as lojas do bairro, deparei-me com uma grande pilha de revistas grossas ilustradas.E o mangá entrou na minha vida.
A partir de 1972, como docente do curso de Editoração das Histórias em Quadrinhos, na ECA/USP, tínhamos uma revista para os alunos escreverem sobre HQ e publicação de trabalhos de autores iniciantes. Foi o início da Quadreca. Num dos cursos havia várias alunas nisseis que haviam lido mangá e resolvi iniciar uma pesquisa mais apurada sobre o assunto.
Na década de 1970 não havia internet e as cartas foram a solução para enviar para as principais editoras japonesas um questionário. E assim saiu a edição “O fantástico e desconhecido mundo das HQs japonesas”, no segundo semestre de 1974, com a contribuição das alunas Sonia Horikoshi, Ruth Vicente Nakamura, Laura Padilha Jurcak e Mary Tashibana. Os dados recolhidos foram estruturados por elas numa pesquisa de amostragem de revistas.
2) Nagado: Como foi o início de sua pesquisa sobre mangá? Ou, melhor dizendo, quando você decidiu devotar seu tempo para uma pesquisa acadêmica sobre o assunto? Imagino que fosse bastante difícil conseguir materiais de referência naquela época.
Sonia Luyten: Academicamente, o meu estudo de mangá foi protelado. Fazia o curso de pós-graduação para obtenção de Mestrado e tive que me adaptar às exigências dos orientadores para concluir.
Não deixei meu contato com a comunidade Nikkei e passei a escrever artigos sobre mangás e desenhistas nisseis nos jornais São Paulo Shimbum e o Suplemento Página Um.
Em 1984, fui junto com a família para o Japão a convite da Universidade Estudos Estrangeiros de Osaka (Osaka Gaidai). Havia completado os créditos para o doutorado, mas o tema mangá ainda não era conhecido no meio acadêmico.
Durante os três anos em Osaka pude fazer uma imersão in loco no universo da Cultura Pop, lendo, assistindo animês na TV e, lá, realmente pude entrar em contato com a produção dos quadrinhos japoneses e seus grandes autores. Através de Takeshi Yanase fui convidada para o Festival de Mangá de Osaka, onde conheci Yumiko Igarashi (desenhista de Candy Candy) e muitos outras estrelas da constelação do mangá.
Foi também a época que conheci Osamu Tezuka, indo até seu estúdio em Tóquio em 1985 para uma entrevista. Foi nesse momento que decidi tornar o Mangá tema da tese de doutorado.
3) Nagado: Qual foi a reação de seu orientador quando viu sua proposta de tese de doutorado sobre mangá? Houve estranhamento, apoio ou alguma posição contrária? Gostaria de saber um pouco sobre o ambiente acadêmico que você encontrou ao lidar com cultura popular, e as dificuldades que existiam na época.
Sonia Luyten: Estando no Japão, escrevi uma carta para meu orientador, o historiador Prof. Dr. Virgílio Noya Pinto. Quando mencionei que gostaria de trocar de tema e enfocar o mangá enquanto reflexo da sociedade japonesa e ícone da Cultura Pop do país, sua reação foi de espanto, mas não de negação. Como o assunto não era da sua alçada, orientaria naquilo que fosse possível enquanto tese de doutorado, mas o conteúdo ficaria por minha conta. Nos anos 1980 não havia nada em termos acadêmicos, nem internet e as buscas por conteúdos de análise foram muito difíceis. Na defesa do doutorado, em 1988, não havia nenhum especialista nesta área. Mas fiz questão que o Álvaro de Moya participasse da banca como perito na área de HQ.
O ambiente acadêmico, mesmo eu tendo defendido a tese, não olhava o tema como objeto de pesquisa. Voltei para o Brasil em 2000 e iniciei outra vez a “batalha” de inclusão da pesquisa sobre mangá na universidade.
Fui professora e Coordenadora do Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de Santos e com o apoio da Fundação Japão e da Cátedra Unesco de Comunicação Regional, organizei em 2003 o I Seminário Internacional de Cultura Pop Japonesa, com vários pesquisadores, jornalistas e autores nacionais (inclusive Alexandre Nagado, autor do Blog Sushi POP) e pesquisadores internacionais como Alfons Moliné (Espanha). E este seminário gerou o livro Cultura Pop Japonesa: Mangá e Animê (Ed. Hedra) em 2006.
4) Você escreveu diversos livros, organizou tantos outros e viu o surgimento de cada vez mais pesquisas acadêmicas sobre mangá e cultura pop japonesa, a ponto de presidir a Comissão de Teses do Troféu HQ Mix. Como você vê o panorama atual da pesquisa sobre mangá e cultura pop japonesa no Brasil? É mais um amadurecimento do fandom, ou você vê entre os novos pesquisadores um interesse maior em algo específico? Como, por exemplo, analisar o mercado editorial, fatores históricos, sociais e políticos ou a própria forma estética e narrativa do mangá...
Sonia Luyten: Atualmente vejo esse panorama de forma espetacular. Nunca imaginei a profusão de trabalhos, artigos e teses sobre a Cultura Pop japonesa. Os que eram fãs e desenhistas de mangá tornaram-se pesquisadores. O próprio livro Mangá Tropical (Ed. Via Lettera), do qual fiz o prefácio, foi um incentivo para posteriores pesquisas.
Através das teses que leio para o Troféu HQMIX, pelas bancas de TCC, Mestrado e Doutorado que participo e os artigos que leio (como parte da comissão científica das Jornadas Internacionais) percebo uma excelência de pesquisa de tópicos em várias áreas da Cultura Pop Japonesa. Quanto ao mercado editorial, vejo que finalmente os desenhistas perceberam que a livrarias e as bancas de jornal nem sempre são necessárias.
Na entrada dos anos 2010, houve o aparecimento de um mecanismo construído sobre as bases do ambiente virtual e muito presente na produção independente de quadrinhos brasileiros: o financiamento coletivo. Hoje, através destas plataformas de financiamento e publicações on-line há uma profusão de editoras independentes e há mangás para serem lidos pela internet. A Catarse foi a primeira plataforma do segmento para projetos criativos. Não pelo retorno financeiro em primeiro plano, mas a grande vontade de criar novas histórias e querer compartilhá-las com antigos e novos leitores. A mudança foi positiva tanto na forma como em conteúdo na Cultura Pop Japonesa.
5) Nagado: Você teve contato com o meio acadêmico japonês quando lecionou por lá entre 1984 e 1990. Lá existe (ou existia) um bom espaço para a pesquisa acadêmica da cultura pop?
Sonia Luyten: Naquela ocasião, no Japão não havia mesmo. Inclusive fiz algumas tentativas com editoras para publicarem títulos no Brasil. Na época não estavam ainda interessados no mercado externo. Também depois que publiquei a primeira edição do meu livro, Mangá, o poder dos quadrinhos japoneses, em 1991, quis publica-lo no Japão. Foi rejeitado como uma espécie de mecanismo de defesa: "se olhar através do espelho". Era uma época do Japão do sentimento de uniqueness. De um lado por causa de sua geografia de nação insular, seu isolamento do mundo exterior durante o regime do shogunato Tokugawa ou, por outro, no discurso público, para evocar um sentimento de nacionalismo.
As pesquisas acadêmicas japonesas só se iniciaram depois que os Estados Unidos começaram consumir, publicar e investigar. O motivo disto é que os japoneses sempre esperam os estrangeiros a fazer algo na maioria dos setores. O jornalismo e as universidades são reservados e cautelosos ao expressar suas opiniões. Os jornais japoneses normalmente não expressam suas opiniões. Esta forma de autocensura os jornalistas chamam de "sontaku", termo que se refere a uma estratégia social de tentar agradar os outros, geralmente superiores.
Fica assim uma distinção proeminente entre a mídia japonesa e ocidental, que é a cartelização de notícias pelo Estado e pelos meios de comunicação estabelecidos. Contudo, nunca olharam para o Brasil, que já tinha desenvolvido um patamar acadêmico na área.
6) Nagado: Como foi seu contato com Osamu Tezuka? Você o conheceu antes da viagem dele ao Brasil, que foi em 1985. Ele se surpreendeu ao saber que conheciam seu trabalho do outro lado do mundo? Quais suas impressões sobre o Deus do Mangá?
Sonia Luyten: Conheci Tezuka antes dele vir ao Brasil. Já conhecia o trabalho dele aqui no Brasil e, por isso, o interesse em ir a Tóquio para entrevistá-lo. Ficou surpreso, sim, com as pesquisas que fiz desde a década de 1970 sobre mangá e animê.
Chegar até ele foi muito difícil. Não pela distância (eu morava em Osaka e o estúdio era em Tóquio) mas pelos trâmites da visita. Enviei várias cartas. Ninguém me conhecia. Mas minha insistência foi muita até que deu certo. Fui por conta própria de shinkansen (trem-bala) com uma professora nissei amiga minha para fazer a tradução.
Uma vez lá, foi uma conversa como se já nos conhecêssemos há muito tempo, pois o assunto era comum a nós dois: O amor ao mangá e ao animê. Tenho um capítulo no meu livro, Mangá - O Poder dos Quadrinhos Japoneses, com todos os detalhes do nosso encontro. Fiz também os prefácios dos volumes da série Uma biografia Mangá: Osamu Tezuka (Editora Conrad).
7) Nagado: Em tempos recentes, ativistas on-line ocidentais têm criticado bastante estilos, títulos e estúdios japoneses por representações ditas "sexistas" ou "sem diversidade" em muitas obras. Há clamor por representatividade, quebra de estereótipos e uma série de agendas políticas e identitárias que têm afetado e orientado profundamente a produção de quadrinhos, filmes, séries e games no ocidente. Em casos isolados, vários empresários e estúdios japoneses já fizeram algumas concessões, cortes e censuras ao longo do tempo. Qual sua posição sobre isso? Autores como Go Nagai (Cutie Honey, Devilman) não têm mais espaço no mundo moderno ou a liberdade artística e de expressão devem ser independentes da influência do momento político de cada época e país?
Sonia Luyten: Embora o mercado de mangá seja um mundo extremamente vasto e bem variado, a sociedade japonesa ainda é muito conservadora quando se trata de papéis de gênero. O mercado de mangás vende uma falsa ideia de variedade enquanto ainda mantém valores conservadores e sexistas.
Essas consequências são que cada indústria favorece sua base com deturpações sexistas e fetichizadas do gênero oposto e se conformando às expectativas igualmente sexistas do gênero alvo.
Mas, na minha opinião, sexismo é um termo que se refere APENAS ÀS MULHERES ! Mas não se aplica aos homens porque ninguém dá a mínima, certo? Então, como esse fascínio pelos seios é sexista? Bem, a resposta é bem simples. Os mangás e os quadrinhos em geral, estão sempre comparando e enfatizando o tamanho dos seios das mulheres, mas dificilmente você os vê comparando ou enfatizando o tamanho da genitália dos homens.
A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, habitualmente conhecida pela sigla inglesa CEDAW, foi adotada pela Assembleia Geral da ONU em Dezembro de 1979. A adoção da Convenção da Mulher foi o ápice de décadas de esforços internacionais visando proteger e promover os direitos das mulheres de todo o mundo. No Japão, embora o primeiro-ministro Shinzo Abe afirmou claramente em seu discurso na 68ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas em 2013, que o governo cultivaria o poder das mulheres como o maior potencial para o crescimento do povo japonês. economia e fortalecer a criação de "uma sociedade em que as mulheres brilhem”, nem sempre isto acontece nos mangás e animês.
Depois que a economia outrora milagrosa do Japão faliu na década de 1990, o país procurou se reposicionar, de uma superpotência global de negócios, para um exportador de uma cultura artística única. O projeto Cool Japan foi uma medida tomada pelo governo para melhorar a imagem do país, que foi abalada por eventos históricos, tais como participações em guerras, problemas com outros países asiáticos, etc... E com isso o país ampliaria as exportações de seus produtos culturais para promover seu soft power e criar uma imagem positiva do país.
E na exportação, houve direcionamento levando em conta o gosto de cada país. No caso específico da estrutura shonen, através do uso do olhar masculino, muitos dos mangás retratam as mulheres com um corpo irreal, principalmente o desenho desproporcional de seios grandes.
Se examinarmos One Piece, por exemplo, também não ficou imune aos efeitos da indústria de animê. A anteriormente inocente Nami foi sexualizada ao extremo. Seus seios triplicaram de tamanho e, em vez de sua camiseta listrada branca, ela usa um top de biquíni minúsculo.
Go Nagai, conhecido por ser na época como politicamente incorreto, (nos anos 70 e 80) teve seu espaço na época em que vivia e dentro de um outro contexto há quase 40 anos atrás. No final da década de 1960, apareceu uma nova onda de cartunistas diretamente ligados às revoltas estudantis que abalaram o país, atacando todos os tabus. A produção de mangá no Japão do pós-guerra é fértil, complexa e foi cunhada como contracultura. Houve a formação de um proletariado às margens das grandes editoras que se reuniram no movimento gekigá produzindo mangás neste cenário político. É o caso de Go Nagai com suas obras e teve muita influência no mundo do mangá no final da década de 1960.
Eu sou contra a censura, mas houve um exagero de alguns desenhistas em novas histórias ou mesmo algumas antigas em aumentar partes do corpo da mulher para fins de exportação. Seios grandes, bundas volumosas, etc. Isto quanto ao corpo da mulher no mangás.
Também não acho certo encaixar as teorias feministas no universo do mangá, pois é um equívoco. Seria necessário um estudo aprofundado do feminismo japonês e da própria ocidentalização do Japão. A sociedade japonesa é bem conservadora. Quanto à censura política, também sou contra. Todos os artistas devem ter liberdade de expressão. A arte se expressa das mais diversas formas e possui as mais variadas formas de leitura. Só que arte passou a ser avaliada não mais sob critérios estéticos, mas levando-se em conta a atitude política do artista. Em nome da evolução, o que era certo ontem pode ser incorreto hoje. E o politicamente correto está tomando um valor ditatorial, ou seja, está colocando pessoas com medo de pensar e expressar suas respectivas opiniões. Talvez não seja o conceito geral de politicamente correto que fere a liberdade de expressão, mas o modo como ele é usado.
8) Nagado: Para encerrar, quais seus mangás ou autores favoritos? O que mais gosta neles?
Sonia Luyten: Esta é a pergunta mais difícil que se faz a um pesquisador. No meu caso tenho preferências e a lista é grande. Não vou me basear em tudo que li para pesquisa, teses ou bancas. Darei o nome de autores conforme a época que li, conheci pessoalmente e que me trouxeram um impacto estético e de conteúdo e foram revolucionários ou inovadores.
Também gosto de algumas mangakás por suas inovações na época e autores que lidam com temas de ficção científica. A lista não segue nenhuma ordem. São todos merecedores das minhas preferências, atemporais, enquanto impacto que causou em mim, como modelos inovadores de mangá e mangá e animê. AUTORES DE MANGÁ:
Katsuhiro Otomo - Li diversas vezes Akira. Cada vez descobrindo novos aspectos desta obra grandiosa. Akira mudou a maneira como imaginamos o futuro a partir de 1982, o impacto visual de seus desenhos e os diversos conteúdos - tanto político (autoritarismo, representação das forças de esquerda e de direita) como social (gangues, violência) e apocalíptico.
Machiko Hasegawa, criadora de Sazae-san, pouco conhecida fora do Japão. Embora Sazae-san possa parecer de uma era passada, quando o mangá original estreou em 1946, Hasegawa, fez sua aparição em um campo dominado por homens com sua criação. Morava no Japão, li muito e assisti dezenas de vezes o animê pela TV. Ficava encantada com sua criatividade com os nomes dos personagens derivados de animais marinhos e coisas relacionadas ao mar: Sazae é "caracol do mar", Tara é "bacalhau", Wakame é "alga", etc.
Yoshihiro Tatsumi - Tatsumi foi por um caminho diferente dos seus pares. Seus roteiros eram mais densos, a arte mais realista e temas introspectivos. As seis histórias apresentadas no mangá Mulheres (o qual fiz o prefácio) são devastadoras, em estilo gekigá, termo cunhado por ele que influenciou muitos outros mangakás.
Go Nagai - Tem obras impactantes. Gosto muito. Há uma de suas obras, Violence Jack (inédita no Brasil), que introduziu mundos pós-apocalípticos nos mangás.
Grupo CLAMP – Formado por quatro mulheres: Nanase Ohkawa, Mokona Apapa, Tsubaki Nekoi e Satsuki Igarashi. O que me encanta é que criam diversos universos em que suas histórias se passam. Me surpreende também a sincronia das mangakás, a dinâmica que conseguiram desenvolver e aperfeiçoar durante os quase 30 anos em que trabalham juntas com uma coleção de mangás admiráveis. Fogem um pouco do estilo meloso do shoujo e as protagonistas femininas são complexas e fortes.
Ryotaro Mizuno (que faleceu em 2018) - Era um artista de mangá, ilustrador, ensaísta e colecionador de trens em miniatura. Ele pertencia a várias sociedades de colecionadores de trens de miniatura e escreveu livros sobre isso. (1991 "Comprehensive Edition of Enjoying Model Trains" Tokyo Shoseki, 2000 "Practice / Application to Enjoy Model Trains" Tokyo Shoseki, 2000) Eu o vi pela última vez antes de falecer. Gostava muito dele. Conheci-o no Japão, na época pertencia à JCA (Japan Cartoonist Association) e me abriu as portas para o contato com muitos desenhistas. Sua principal obra foi Onomato pera-pera: Onomatopeia japonesa e mimetismo em mangá, que me deu de presente e uso muito.
Takeshi Yanase - A época que morei no Japão coincidiu com o Festival de Mangá na cidade de Osaka e fui convidada por Takeshi Yanase, que já pertencia à Japan Cartoonists Association. Ele é o autor de Anpanman.
Akira Toriyama - Dragon Ball é um shonen atemporal, seguindo o herói Goku, sendo poucos os mangás que fazem isso.
Fujio F. Fujiko - Lendo e assistindo muito Doraemon, observava que o garoto Nobita era um personagem de má influência para as crianças, pois tudo que ele precisava fazer, inclusive lição de casa, o gato futurista vinha em seu socorro. Mas a magia do mangá reside na forma como toda essa dinâmica funciona liderada por Doraemon e sua infinidade de aparelhos futuristas. E a obra acerta na cabeça dos desejos das crianças. Especial também por isso.
Tsugumi Ohba e Takeshi Obata: Death Note – fiquei apaixonada. É uma série muito profunda deixando dúvidas na mente de quem o lê (ou assiste). Gosto também como Tsugumi Ohba e Takeshi Obata violaram o arquétipo do herói e tentaram construir uma noção de Justiça. Um grupo de teatro me procurou uma vez para dar noções bem específicas do Death Note para adaptar ao teatro. E assim foi feito no Teatro SESI.
Hiromu Arakawa - É outra mangaká que aprecio muito. Entra no universo masculino shonen com Fullmetal alchemist. Para mim, a desenhista consegue fazer um mangá divertido e, ao mesmo tempo, entrar com questões sobre o sentido da guerra e a existência de Deus . Além do mais, usa o estilo steampunk, que adoro. Ela é inspiradora.
Hayao Miyazaki - Sempre tocou meu coração com seus animês. Na minha casa, seus longas passaram por três gerações: eu mesma, minhas filhas e minhas netas. Escrevi alguns artigos sobre Miyazaki sob vários pontos de vista: Seus animês enraizados na identidade nacional japonesa, o olhar de seus personagens infantis aos espíritos e as energias das florestas, as cidades fictícias, ecologia e o estilo steampunk presente em alguns de seus animês.
Osamu Tezuka - Last but not least ("Último, mas não menos importante").
Sobre ele tanta coisa já foi falada, escrita, analisada, comentada... Será muito redundante.
Só posso dizer que foi amor à primeira vista. E a paixão que temos por Osaka e a região do Kansai.
O QUE TENHO LIDO E ASSISTIDO:
Na pandemia, assisti animês e li mangás:
Blue Period: (Netflix) Sobre um adolescente angustiado que descobre o artista reprimido dentro de si após observar uma pintura que o comove,
Spy × Family: (Crunchyroll.) Mistura comédia, mistério, ação e drama político.
Boa Noite, Punpun: Mangá que é um dos grandes sucessos de Inio Asano, Punpun é representado assim sem rosto com a ideia de fazer o leitor se colocar no lugar do personagem. Muito triste....
The Orbital Children, de Mitsuo Iso: (Netflix) Tema que gosto, ficção científica sobre crianças nascidas na Lua e crianças da Terra que estão em uma viagem ao espaço se encontram na estação espacial construída pelos japoneses.
Mensagem final:
Finalizando, procurei sempre na minha carreira acadêmica dar espaço para a Cultura Pop Japonesa em termos de pesquisa mostrando suas dimensões históricas, culturais, sociológicas e econômicas. Incentivei muitos e muitas artistas a desenhar tendo o mangá como referência como obras criativas. Depois de muitas décadas como pesquisadora desta área no Brasil, recebi uma honraria do Governo Japonês. [Nota: Foi em 2008, ano das comemorações do Centenário da Imigração Japonesa no Brasil.]
Um pequeno e pessoal depoimento:
Com seu currículo impecável, Sonia Luyten é uma das maiores autoridades mundiais no campo da pesquisa sobre quadrinhos e mangá, e também uma pessoa muito querida por este que vos escreve. Seu livro sobre mangá foi importante para mim, ensinou muita coisa e quando nos conhecemos, descobri que ela é também uma grande pessoa. Seu saudoso marido, Joseph Luyten, um pesquisador da área de literatura de cordel, era outra pessoa muito querida.
Sonia teve a generosidade de me abrir portas, me apresentou pessoas, indicou trabalhos e chegamos a palestrar juntos em alguns eventos. No Seminário de Cultura Pop Japonesa da universidade UniSantos, em 2004, ela me incluiu entre os palestrantes, ocasião em que me vi entre doutores e mestres acadêmicos. Logo eu, que sequer tenho diploma universitário. Sonia foi uma inspiração, um apoio e uma grande incentivadora.
Em 2008, ela me avisou sobre o processo de seleção para intercâmbio no Japão, no qual fui aprovado e vivi uma aventura incrível. Por tudo isso contado aqui, e pela atenção e paciência de sempre ao responder a entrevista, muito obrigado, mestra! Que Deus a abençoe!
- Ale Nagado
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Leia também: - Mangá: História, evolução e influência
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