Programas de computador criando imagens e histórias. Qual será o impacto disso na indústria do entretenimento?
Um dos maiores desafios da ciência computacional é aprimorar o desenvolvimento da Inteligência Artificial, a fronteira final em termos de complexidade em softwares. Isso pode levar a inúmeras aplicações em vários campos do conhecimento, incluindo a criação de arte aplicada para o entretenimento, conforme já está acontecendo. Recentemente, a empresa Novel.AI Diffusion começou a distribuição de seu software de geração de imagens em estilo animê. Seguindo uma combinação de parâmetros que o usuário insere no sistema, imagens de alto nível técnico são geradas conforme pedido pelo usuário.
As aplicações de Inteligência Artificial no campo das artes visuais têm crescido exponencialmente e agora chega ao fã comum de animê, que pode dar asas à sua imaginação e criar personagens. A utilidade disso no campo das light novels (os romances curtos e com ilustrações em estilo mangá ou animê) é ilimitada, pois muitos criadores agora podem escrever suas histórias já pensando em publicação independente, sem precisar recorrer a um desenhista para formar parcerias.
As imagens podem ter um aspecto padronizado, mas possuem leveza, movimento, naturalidade, dando a real impressão de que poderia haver um esboço prévio feito por um artista, mas é tudo gerado por Inteligência Artificial.
Imagens geradas por IA têm se tornado cada vez mais comuns, indo de impressionantes interpretações do espaço sideral a sofisticadas emulações de pinturas de arte sacra.
No campo audiovisual, a Inteligência Artificial já é capaz de colorir filmes em preto-e-branco e transformar filmagens antigas cheias de partes truncadas e com chuviscos em imagens fluidas e de alta resolução, o mesmo podendo ser feito para restaurar ou até melhorar a imagem de antigas animações. Pela internet, é possível achar renderizações de alto nível feitas a partir de desenhos animados antigos, transformando animações deficitárias ou datadas em sequências fluidas em HD ou 4k.
Não há mais limites técnicos para aumentar a qualidade de uma animação sem ter que pagar desenhistas de intervalos (que dão fluidez à animação 2D) e acelerar o tempo de produção. Porém, uma tentativa de se usar IA para criar animações 3D no Japão terminou em um verdadeiro desastre.
Em 2016, a empresa Dwango realizou um teste de animação, no qual uma figura humana deveria se locomover usando como elemento principal a cabeça, tendo braços e pernas sem movimento. Foi esse o desafio proposto a um programa de IA. O resultado foi uma cena grotesca, no qual uma figura escura se movia contorcendo pescoço, ombros, tórax e quadril para avançar em um cenário virtual.
Convidado a assistir ao teste, o diretor e roteirista Hayao Miyazaki se enfureceu com o tema do teste, dizendo que aquela cena passava uma ideia de sofrimento e ofensa à vida humana. Ele se disse enojado com tamanho desrespeito, informando que possui um amigo com paralisia grave, cujo sofrimento não significava nada para as pessoas que o convidaram a ver o teste. E ao ouvir de um dos envolvidos que o objetivo deles é criar um programa que consiga desenhar e animar como um ser humano faria, Miyazaki se irritou ainda mais. O projeto foi imediatamente cancelado, o que não quer dizer que tenha sido abandonado.
Mas, se no campo das imagens (estáticas ou em movimento) a IA pode abalar o mercado ao buscar substituir a mão-de-obra do artista profissional, a criação de histórias e roteiros será afetada? Talvez não a curto prazo, mas as ferramentas para tal feito já estão em desenvolvimento.
PAIDON: UM MANGÁ ARTIFICIAL
No Japão, foi lançado há dois anos um mangá cuja história foi gerada por um programa de I.A., desenvolvido para o projeto Tezuka 2020. Trata-se de uma tentativa de produzir mangá emulando as técnicas, o estilo narrativo e as ideias pessoais do genial Osamu Tezuka (1928~1989), o aclamado Deus do Mangá. Para isso, 65 obras de Tezuka foram analisadas em um programa a fim de criar uma história totalmente inédita, que seguisse os parâmetros e padrões do falecido artista.
Tezuka 2020 surgiu de uma parceria entre a Tezuka Productions, a Kioxia Holdings e a Universidade de Keio, através de seu professor Satoshi Kurihara, especialista no assunto de IA. A supervisão geral ficou com Macoto Tezka, filho de Osamu Tezuka, que garantiu que a proposta da história é compatível com o que seu pai poderia ter feito se estivesse vivo.
O resultado foi a novíssima obra PHAEDO (inicialmente chamada Paidon), lançada no Japão no final de fevereiro de 2020, como parte da antologia Morning, revista de mangá voltada ao público seinen (jovem do sexo masculino) da editora Kodansha.
PHAEDO conta a história de um filósofo andarilho que tenta resolver casos criminais em um mundo futurista, acompanhado de um pássaro-robô. A trama foi criada ao acaso, misturando palavras e temas, com a IA fazendo um brainstorming virtual até apresentar uma trama básica, que após alguns ajustes, fazia sentido.
A concepção visual dos personagens também ficou com o programa, mas os primeiros resultados foram desastrosos. Aos poucos, ajustes foram feitos para que a máquina "aprendesse" a interpretar corretamente traços em 2D a fim de oferecer um character design funcional e dentro do estilo de desenho cartunesco de Osamu Tezuka.
A base foi então trabalhada manualmente por ex-assistentes de Tezuka, como o respeitado autor Satoshi Ikehara, que produziu adaptações em mangá para personagens como Ultraman Taro, Rei Arthur, Star Wars, Menino Biônico e MegaMan. O roteiro final, diálogos, distribuição de quadros e acabamento foram realizados por humanos, mas o teste de criação via IA foi considerado um grande sucesso.
De certa forma, PHAEDO pode representar o início do fim da carreira de muitos criadores. Sim, pois mesmo que para os melhores autores sempre haja espaço, o mesmo não se pode dizer dos autores medianos e seus assistentes, que movem a maior parte da indústria. O programa ainda não é capaz de realizar todas as etapas de produção de um mangá, mas a criação - talvez a parte mais difícil - já pode ser trabalhada com resultados satisfatórios e facilmente ajustáveis.
O maior autor de mangá de todos os tempos pode ser a chave para uma revolução no meio editorial, mas é impossível saber como o próprio artista reagiria a todo esse movimento. O mais provável seria uma reação no mínimo preocupada, no máximo enfurecida, como foi com seu contemporâneo, Hayao Miyazaki.
E há um outro ponto também a se considerar. Toda obra carrega, de forma implícita ou explícita, as visões de mundo e crenças de seus autores. Uma IA pode ser programada para ter valores conservadores ou esquerdismo radical, pode ser programada com valores cristãos, budistas ou satanistas, sem distinção.
Tudo vai depender de quem programa e insere os dados a serem armazenados para formar o repertório intelectual da máquina, o que pode levar a resultados controversos. Mas antes de tudo isso, há o lado profissional e ético que envolve emular o trabalho de autores falecidos e os limites para essa atuação.
QUESTÕES ÉTICAS E PROFISSIONAIS
Levando a ideia de criação artificial às últimas consequências, pode-se ter no futuro "novos mangás" de qualquer autor falecido, como Kazuo Koike ou Shotaro Ishinomori, ou ainda, indo pra outros países, "novos quadrinhos" de Will Eisner, Stan Lee ou Jack Kirby. E também poderão surgir "novos livros" de Ray Bradbury e Júlio Verne ou "novos" tratados filosóficos de Platão, Hegel, Marx ou Olavo de Carvalho. As aspas, aqui, são usadas por motivos óbvios: não se pode ignorar que serão emulações sofisticadas, mas sem o aval de quem as inspirou. Ou pode acontecer como no mundo real, onde o "autor virtual" começa com certas influências e depois chega a um estilo pessoal inconfundível.
O livro 1984, lançado em 1949 por George Orwell, é uma obra sombria sobre um futuro distópico e totalitário (que, aliás, já vivenciamos em muitos aspectos) onde as pessoas têm suas vidas controladas nos menores detalhes, inclusive no entretenimento.
No mundo imaginado por Orwell, as pessoas ouvem e se divertem com músicas criadas por programas de computador, apenas uma das formas de controle social do governo do "Grande Irmão". Algo já perfeitamente possível no campo da IA é a criação de canções pop simples que poderão ser oferecidas para o consumo das massas pouco exigentes, sem qualquer presença humana em sua elaboração.
Compositores de música popular sendo substituídos por Inteligência Artificial, músicos trocados por sintetizadores operados também por I.A. e vozes sintetizadas, como já acontece com os Vocaloids surgidos no Japão. E será colossal a repercussão midiática se um dia anunciarem "novas obras" de John Lennon ou até mesmo Beethoven, que poderão ser vistos em palcos através de hologramas realistas. O exposto aqui é apenas um exercício de imaginação, mas o leque de possibilidades que se abre só tem mesmo a imaginação como limite.
A aplicação da I.A. no entretenimento também permitirá que produtores consigam emular estilos de autores, artistas ou compositores ainda vivos, fazendo pequenas alterações, para não incorrer em plágio.
Como todo avanço tecnológico, a I.A. pode ser aplicada para o bem ou para o mal, dependendo da ética e moral das pessoas envolvidas. Osamu Tezuka tinha essa visão bem clara, com suas obras sobre um futuro com máquinas humanizadas protegendo as pessoas de outras, usadas para fins egoístas.
Independente disso, não deixa de ser assustador imaginar um mundo onde a criatividade, aquilo que sempre se considerou uma característica exclusiva dos humanos, possa ser emulada por computadores, que não precisam descansar, se alimentar e nem têm famílias para sustentar. Os que diziam que as máquinas nunca iriam tirar o trabalho de pessoas criativas precisam ajustar um pouco suas expectativas quando se fala em entretenimento ligeiro para a população.
Não se imagina que grandes gênios visionários fiquem desempregados, mas sim autores medianos ou apenas bons, uma massa de profissionais que realmente movem os mercados criativos, e cujo emprego estará ameaçado. Certamente, ainda não se pensa seriamente em coisas assim, mas ninguém sabe até onde esse avanço irá chegar em menos de uma geração.
Estamos vivendo uma era de transformações e constante transição e adaptação social graças à tecnologia. O impacto da Inteligência Artificial no entretenimento é uma das aplicações menos relevantes, se comparada com o que pode ser feito na medicina, economia ou até em políticas de Estado; mas, sem dúvida será uma das mais presentes no cotidiano das pessoas.
"O progresso e a Ciência não devem deixar a natureza e a humanidade para trás." - Osamu Tezuka
"Eu sinto como se estivéssemos chegando ao fim dos tempos. Nós, humanos, estamos perdendo a fé em nós mesmos." - Hayao Miyazaki
::: VÍDEOS SELECIONADOS :::
1) Vídeo oficial do projeto Tezuka 2020:
2) Reação de Hayao Miyazaki a uma animação criada por Inteligência Artificial:
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