top of page

Tokusatsu e a suspensão de descrença

Reflexões sobre o estranhamento de muitas pessoas perante super-heróis e monstros japoneses.

Ultraman Geed, Zero e Orb.

Tokusatsu, termo que designa os filmes e seriados japoneses com efeitos especiais, é facilmente identificado com obras como Ultraman e Jaspion. É parte fundamental da chamada cultura pop japonesa e há um fandom específico no Brasil, grande parte ligado à nostalgia; mas também há os que acompanham as novidades da área, especialmente as séries das franquias Kamen Rider, Super Sentai e Ultraman.


No entanto, há também uma parcela de pessoas que, mesmo tendo algum elemento nostálgico e memória afetiva de infância envolvendo super-heróis de tokusatsu, não consegue se conectar mais ao gênero como um todo. São jovens e adultos ditos "normais" que têm uma reação diferente dos fãs ao ser exposto a alguma obra de tokusatsu. E sempre foi assim.


A primeira onda de séries vistas no Brasil, com National Kid, Ultraman e outros no final dos anos 1960 e começo dos 70, já veio tecnicamente defasada para cá e era comum ver adultos reparando em monstros com trajes de acabamento falso, alguns com zíper da fantasia à mostra, ou eventuais fios pendurando maquetes de naves. A segunda onda, deflagrada por Jaspion e Changeman no final dos anos 80, também passou por isso; mas houve uma série exibida durante a febre de heróis japoneses daquela época que foi vista com certo estranhamento: Lion Man. Era uma série bem mais antiga que as outras, bastante dramática e com cenas pesadas, morte de crianças e muita brutalidade; mas que muita gente, até hoje, dá risadas quando lembra.


O acabamento pobre das fantasias faz Lion Man ser lembrado com deboche por muita gente. Crianças não ligavam para a produção e se concentravam nas histórias, mas muitos pré-adolescentes e adolescentes não conseguiam se conectar à história por causa da produção e se limitavam a rir da série. Perderam grandes histórias, para dizer o mínimo.


Até hoje, muitas pessoas - incluindo diversos fãs de animê - desprezam o tokusatsu, afirmando que são todos iguais, ou um monte de clichês e coisas toscas feitas só pra vender brinquedo, sem nenhum valor como entretenimento de gente com o mínimo de inteligência. Ou algo feito somente para crianças, apenas repetindo o preconceito de tantas pessoas que vivem dizendo que desenhos japoneses são todos iguais.

Lion Man: Histórias dramáticas ignoradas por quem busca apenas o apelo visual.

As produções infantis realmente são a maioria no tokusatsu, mas existem outras mais indicadas para adolescentes, adultos e outras ainda que permitem diferentes níveis de entendimento, conforme a idade e percepção de mundo. Isso acontecia muito com as séries Ultra clássicas, com mensagens e questionamentos que muitas crianças da época só foram perceber ou valorizar depois de rever quando adultos. Boas histórias permitem diferentes camadas de percepção mas, para considerável parcela do público (mesmo os ligados em cultura pop japonesa), a impressão geral é a de que todo tokusatsu é sempre igual, sempre descartável.


Obviamente, nenhum desses nunca prestou atenção nos grandes clássicos ou em boas produções modernas, com evolução nos efeitos especiais e principalmente na forma narrativa, batendo o olho no visual extravagante e tirando conclusões apressadas. Não é muito diferente de adultos "normais" que costumam dizer que animês são todos iguais, sempre com personagens de olhos arregalados, gritando e lutando, em um caos de violência e erotismo. Em todos os casos, existe um estranhamento sobre a forma, que impede a conexão com o conteúdo, ou seja, com a história. Algumas vezes pelo tema, mas principalmente pela forma como é apresentada. É a falta da "suspensão de descrença".


Suspensão de descrença é decorrente da vontade de um leitor ou espectador em embarcar em uma narrativa. É como estar no teatro e deixar a mente mergulhar na história, aceitar que os atores SÃO os personagens e se permitir acreditar no enredo, ignorando que o cenário é limitado pelo palco à vista de todos. Ou assistir a um musical e aceitar que as canções são parte da narrativa, com os personagens expressando o que sentem em músicas, muitas vezes com transeuntes na rua de repente cantando e dançando juntos.


Sem a cumplicidade do público, nenhuma narrativa funciona. Isso não é muito diferente da experiência de acompanhar qualquer tipo de história narrada em qualquer tipo de mídia. Mas, por lidar com uma filmagem, com uma produção com atores, a suspensão de descrença não funciona da mesma forma e o grau de exigência é maior.


Uma pessoa que goste do tipo de história sobre heroísmo contada numa série tokusatsu vai mergulhar na história de prontidão, aceitando certos elementos estilizados como parte de um estilo ou proposta visual que não precisa estar comprometida com o realismo. Os próprios orçamentos que envolvem produções para TV não permitem criar algo muito elaborado, e os diretores e produtores precisam usar de muita criatividade para um nível de estrutura que seja crível para a história que se quer contar.


Para quem só liga para visual e produção, a história pode ser tensa ou dramática, não importa. Quando aparecer um monstro, se ele não for no nível próximo de uma obra de Hollywood, como o aclamado Shin Godzilla (2016), o espectador "normal" pode cair na gargalhada e ficar apontando que o monstro é tosco, ignorando todos os esforços em se contar uma história. Ou ficar ressaltando que as naves, robôs e armas parecem brinquedos de plástico. E aí, vêm os preconceitos tradicionais, de falar que é tudo igual, ignorando que histórias muito interessantes ou divertidas podem estar sendo contadas.

Shin Godzilla: Produção esmerada, de nível internacional.

Muitas pessoas simplesmente não conseguem realizar a suspensão de descrença e param na porta, acreditando terem entendido a essência e julgando o todo por uma parte. Isso acontece muito na cultura pop, em todos os segmentos.


Existem fãs de mangá que adoram debochar dos super-heróis americanos que "usam cueca por cima da calça" e ignoram muitas histórias fantásticas que já foram contadas, apenas dispensam. Pode ser um clássico do Superman de Alan Moore, ou o Batman de Frank Miller, que um leitor preconceituoso pode taxar de ridículo e se achar muito descolado por perceber que a sunga sobre a calça parece uma roupa de baixo usada de forma estranha. Assim, pode perder a experiência de ler grandes histórias.


Em toda obra audiovisual, há qualidades intrínsecas ligadas ao enredo, atmosfera e forma narrativa. Qualidades técnicas podem estar sujeitas ao tempo, o que não diminui as qualidades perenes citadas anteriormente. Sem querer ser saudosista, por exemplo, pergunte a qualquer fã de Star Wars para comparar a trilogia clássica com a mais recente. Os efeitos especiais são incomparáveis, pois são separados por décadas de evolução técnica, mas ao se falar em história e personagens, o abismo se inverte. E nada disso tem relação com os atuais debates envolvendo agendas políticas que têm dominado o entretenimento; o foco aqui é sobre valores de produção, estilos visuais e como isso altera a percepção do público ao consumir (ou evitar) uma obra.


Esse embate entre a suspensão de descrença e a habilidade em contar uma história com as ferramentas disponíveis é o grande desafio para qualquer produtor de conteúdo. Em maior ou menor grau, se não é conquistada a cumplicidade do público, todo o esforço da produção é em vão.


Na maioria dos casos, o insucesso em conseguir a adesão do público é culpa de quem produz uma obra. Mas em outros casos, notadamente quando se fala de tokusatsu, a culpa é de uma despercebida carga de preconceitos usada por várias pessoas, não raro como autoafirmação de sua maturidade ou capacidade intelectual.


SAIBA MAIS:

(Post do blog Casa do Boneco Mecânico)

- O roteirista Yuji Kobayashi conta muita coisa sobre a estrutura e as convenções de séries de super-heróis japoneses. Saiba o motivo de tantos heróis se apresentarem após a transformação (e os vilões esperarem isso para lutar), os conceitos que envolvem diferentes produções e franquias e muitos esclarecimentos relacionados ao universo do tokusatsu e o trabalho de seus criadores.


*****************************

- Você pode apoiar o meu trabalho de divulgação cultural em diferentes mídias, doando qualquer valor a partir de R$ 5,00 e incentive a continuidade do Sushi POP.

- A doação pela plataforma Apoio Coletivo pode ser única ou recorrente, de maneira pública ou anônima. - Se preferir, pode doar através do PIX: nagado@gmail.com - Muito obrigado pela atenção e apoio. Que Deus abençoe seu lar!

bottom of page