Um livro que foi pioneiro na investigação de um fenômeno social surgido no Japão.
Nas últimas décadas, a mania por desenhos animados e quadrinhos japoneses criou uma nova tribo urbana de fãs, que lota convenções e eventos pelo mundo. São os otaku, que na verdade se dividem em muitos segmentos, com nichos cada vez mais específicos. A maioria desses fãs radicais não admite críticas ao que gostam e tratam de personagens com reverência quase religiosa. Sobre esse tema, o livro pioneiro no estudo das origens do fenômeno é Otaku - Os Filhos do Virtual, do escritor francês Étienne Barral.
Nascido em 1964 e formado pelo Instituto Nacional de Línguas e Civilizações Orientais da França, o autor roteirizou um documentário intitulado Otaku para um estúdio francês em 1994. Vivendo no Japão desde 1986, resolveu fazer uma investigação minuciosa sobre as origens e características do fenômeno otaku em seu local de origem. O termo surgiu em 1983, em um ensaio de Akio Nakamori, que pegou a palavra local para "casa" e lhe deu novo significado, dizendo que uma pessoa otaku seria alguém que se fecha em si mesmo, criando um mundo de sonhos para fugir da realidade.
Segundo Etiénne Barral, os otakus japoneses são pessoas antissociais que se fecham num mundo imaginário, vivendo numa bolha de isolamento social. Mas eles não se restringem apenas a fãs de mangá e animê, como se convencionou dizer no ocidente. Existem otakus de todos os tipos; como os obcecados por filmes de monstros, trens antigos, armas de guerra, jovens cantoras idol, games, pornografia virtual e uma infinidade de assuntos.
Cada aspecto da cultura pop, cada área de interesse, pode gerar segmentos de otaku. Há casos de colecionadores de miniaturas que criam uma relação imaginária com pequenas bonecas, com quem conversam ao voltar pra casa depois de um cansativo dia de trabalho. Tal comportamento desembocou, em anos recentes, nos casos de pessoas que se "casaram" com personagens de game.
Com uma abordagem séria, o livro detalha o que leva uma pessoa a se isolar do mundo real, buscando no mundo da fantasia uma válvula de escape para suas angústias e sua incapacidade de convívio social e relacionamento humano.
Ao longo do livro, casos policiais envolvendo o tema otaku também são apresentados com riqueza de detalhes. É abordado o caso da Seita AUM, que usava terminologia otaku para atrair fãs, bem como o macabro caso do serial killer Tsutomu Miyazaki, que matou quatro meninas e, quando preso, descobriram que era um otaku. O brutal iijime, o bullyng japonês, também merece um olhar atento, pois é a causa de muitos problemas emocionais e fuga da realidade entre crianças e jovens.
Dos mais moderados aos seriamente perturbados, os genuínos otakus das primeiras gerações são bem diferentes dos nerds americanos, pois são resultantes de uma sociedade altamente controlada socialmente como é a do Japão. O livro mostra claramente um cenário muito diferente daquele vivido pelos chamados otakus brasileiros. No Brasil, o termo tem sido usado apenas para denominar os fãs de mangá, animê e cultura pop japonesa em geral. Aqui, até por questões culturais, os otakus são mais desencanados e gostam de coisas variadas, como séries americanas.
Diferente do que ocorre no ambiente otaku japonês, o brasileiro gosta mais de andar em grupo, a presença feminina é grande e é comum ver casais de namorados em convenções. O otaku brasileiro tem na verdade pouco a ver com sua contraparte nipônica, pois o que caracteriza um otaku não é o seu gosto, mas o fanatismo com o qual se dedica ao que deveria ser um hobby para horas vagas. Apesar disso, aqui também existem os que são radicais em busca de eterna auto-afirmação, exaltando os valores de seus desenhos preferidos de modo quase religioso e desdenhando o que vem de fora.
O livro é leitura obrigatória para interessados em quadrinhos, psicologia, sociologia, cultura pop e, principalmente, para quem se considera otaku e nunca leu nada a respeito - ou que pode ser um otaku e não faz ideia do que se trata. Sobre isso, certa vez, um jovem respondeu, ao ser questionado em um programa de TV japonês, que um otaku não é muito diferente de um torcedor fanático de futebol.
Mais de vinte anos após seu lançamento, a obra de Etiénne Barral continua sendo uma leitura fascinante e obrigatória para quem busca conhecimento teórico e bem embasado sobre a cultura pop japonesa.
OTAKU - OS FILHOS DO VIRTUAL
Título original: Otaku - les enfants du virtuel (Éditions Denoël, 1999)
Autor: Etiénne Barral Prefácio: Jean-Jacques Beineix
Tradução: Maria Teresa Van Acker
Formato: 14 x 21cm, com 272 páginas
Lançamento: Editora SENAC (2000) / 2ª edição em janeiro de 2011
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NOTA COMPLEMENTAR ~ OTOME:
Muita coisa mudou na percepção do que é o fenômeno otaku desde o lançamento do livro, mas toda sua essência permanece atual. A palavra não tem flexão (o plural com "s" é mera adaptação local), mas durante um tempo, no Japão, usou-se bastante um termo específico para garotas otaku, que é otome. Tradução direta de "donzela", foi um contraponto ao estereótipo do otaku masculino, geralmente desleixado com aparência e higiene (daí o apelido "otaku fedido"). São garotas femininas e elegantes, e até existe em Tokyo, região de Ikebukuro, a Otome Road, com lojas de material otaku para o público-alvo feminino.
Com o tempo, porém, isso acabou dando lugar ao uso do termo otaku de modo genérico, sendo que "otome" nem chegou a ser usado no ocidente. Até surgiram neologismos derivados de otaku, como "aniota" (otaku de animê) e "tokuota" (otaku de tokusatsu), tendo como característica a especialização num segmento. Tais questões são posteriores ao período em que o livro aqui indicado foi escrito.
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