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Ale Nagado

Tradutores Militantes

De pequenas adaptações de termos a frases inexistentes no original, certos tradutores e editores foram longe demais em sua militância política. Um debate sério sobre isso teve início.

Tiger and Bunny: Um dos muitos casos de diálogos adulterados na adaptação.

Que o mundo do entretenimento foi dominado por uma série de discursos políticos, isso não é novidade alguma. Canais como o Heróis e Mais, Ok Nerd, Linhagem Geek e toda a Liga Nerdola estão sempre atentos e denunciando os excessos de militância política em filmes, séries, animações e nos quadrinhos. No entanto, esse embate de ideias e valores pode estar entrando em uma nova fase.


No dia 30 de dezembro, no Twitter (digo, no X), o perfil Bounding Into Comics (@boundingcomics) fez um post denunciando a militância política de tradutores que fazem alterações no texto e intenções originais dos autores, promovendo agendas ideológicas e identitárias. Através de uma thread, diversos exemplos foram apresentados, exemplificando algo que já não é mais uma exceção, mas uma norma na indústria de entretenimento.



Segundo o Bounding Into Comics, o game NEO: The World Ends with You teve um diálogo alterado para incluir uma mensagem anti-capitalismo. Em outro game, o Skies of Arcadia (no Japão, Eternal Arcadia), o tradutor ocidental admitiu que reescreveu vários diálogos.


Já a dublagem em inglês da Netflix para o animê Tiger & Bunny 2 inseriu uma crítica às "normas de gênero antiquadas" e fez um personagem se declarar feminista, ainda que isso não constasse no original. E na comédia romântica Acho que Transformei Meu Amigo de Infância em Uma Garota, um personagem que originalmente é um rapaz afeminado passou a ser chamado de uma "garota transgênero". É uma obra de orientação LGBTQ (não sei se ainda se escreve assim), mas até os fãs apontaram que a tradução foi infeliz e não adequada às intenções do autor. Os exemplos são muitos.



No Brasil, ficou famoso em 2020 um caso envolvendo a Editora Pipoca e Nanquim e sua versão do mangá Recado Para Adolf, de Osamu Tezuka. Em um quadrinho, quando um velho nazista está acamado, ele diz para não se preocuparem com sua saúde, pois ele tinha "histórico de atleta". Era uma alusão bastante direta a uma frase controversa do então presidente Jair Bolsonaro (2019~2022) ao dizer que, por seu "histórico de atleta", não se preocupava muito com a pandemia que se iniciava e sobre a qual pouco se sabia.


A provocação incomodou os bolsonaristas e um grande debate incendiou as redes sociais. A editora partiu em defesa da tradutora e toda a comunidade de editores e pessoas ligadas a quadrinhos defendeu a posição da Pipoca e Nanquim, com exceção das pessoas associadas com movimentos de Direita.


É bom ressaltar que foi totalmente desnecessário incluir na tradução de uma obra criada no Japão dos anos 80 uma alusão à política contemporânea brasileira. É condicionar a um momento uma obra que se propõe atemporal em suas reflexões.


Movidos pelas mesmas paixões políticas que motivaram a tradução enviesada, muitos deixaram de ler a obra e todos saíram perdendo. Tudo por causa da polarização insana, estúpida e raivosa que se instalou de modo irreversível no Brasil, especialmente desde as eleições de 2018.

Adolf: Um caso nacional de provocação política.

O que está em jogo não é apenas o embate de ideias e posições políticas, mas sim uma questão de respeito à obra original. Isso é o mínimo que se espera de uma boa tradução.


Um outro ponto que deve ser enfatizado é que, ao contrário do que muitos pensam, o mangá, o animê, o tokusatsu e o próprio cinema japonês sempre foram carregados de ideias políticas. Porém, a grande diferença entre a visão japonesa e a ocidental é que talvez não seja bem percebida por muitos. A questão nem é colocar ou não visões políticas, mas a intensidade e o equilíbrio dessas visões no contexto de cada enredo.


Com numerosos exemplos vistos ano longo do tempo, a história deve ficar sempre em primeiro lugar, com a jornada do personagem principal, os relacionamentos e acontecimentos. As mensagens políticas, quando existem, estão organicamente inseridas no contexto, evitando discursos muito diretos. E há autores, como Rumiko Takahashi e Eiichiro Oda, que já se manifestaram dizendo que não procuram passar mensagens políticas em suas obras, e sim entretenimento.


Mais do que um embate entre ideias, estão em choque duas visões sobre a cultura em si.


Um lado defende que o entretenimento equilibrado e sadio deve estar acima de ideologias, enquanto o outro lado entende que é preciso se manifestar politicamente o tempo todo, sem trégua, pois "tudo é política" na cabeça do militante doutrinado. Porém, mesmo assim, o lado que defende a politização full time não entende o direito de alguém não se posicionar explicitamente, tomando para si a iniciativa de enviesar traduções para melhor acomodar sua visão de mundo, e não a dos autores.


A questão, no fundo, tem mais relação com ética e profissionalismo, o que inclui (ou deveria incluir) um grande respeito às intenções de um autor que se vai traduzir.


  • Agradecimentos ao desenhista Riojin, que indicou o assunto pelo Twitter.


VEJA TAMBÉM:


- Matéria tendenciosa, ainda que interessante, sobre questões políticas abordadas em obras relevantes. Se você entende inglês, recomendo muito essa leitura.



- O canal Nova Gênesis fez um interessante apanhado de refutações à ideia de que One Piece seria uma obra de fundo comunista ou esquerdista. O conceito foi bastante difundido no evento CCXP de 2023 após uma palestra polêmica e doutrinária (por mais que cinicamente certos canais com ideias de esgoto relativizem isso), gerando debates acalorados. O vídeo mostra muitos exemplos da série e até declarações do autor, que revela que não passa mensagens políticas em suas histórias.




- Finalizando, indico aqui um recorte de uma live feita em 2022 no Canal Túnel do Tempo TV. Em um trecho, comento sobre lacração, anti-lacração, "guerra cultural", criação de conteúdo e de novas histórias. Não é uma crítica aos criadores de conteúdo "anti-woke", mas um manifesto pessoal de que é preciso ir muito além disso. Indicar boas obras, de qualquer época, e não ficar escravo do hype do momento.


 

- Se você quer apoiar o trabalho de divulgação cultural do autor, considere fazer uma contribuição financeira a partir de R$ 10,00. A doação pela plataforma Apoio Coletivo pode ser única ou recorrente, de maneira pública ou anônima.


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