BUSHIDÔ - O código de honra dos samurais
- Ale Nagado
- há 5 horas
- 8 min de leitura
Uma análise histórica e contextual sobre um dos mais conhecidos e respeitados elementos da cultura japonesa.

Mencionado em numerosas narrativas, bem como referenciado por coaches motivacionais, o Bushidô ( 武士道 ) é o código de honra que regia a conduta dos guerreiros samurais. Começou a ser difundido mundo afora no final do século XIX, com a publicação do livro Bushido - The Soul of Japan, ou Bushidô - A Alma do Japão. O termo "bushi" refere-se a guerreiro de cavalaria, uma antiga definição para "samurai" enquanto o "dô" significa "caminho".
Os samurais eram considerados nobres durante o período feudal no Japão, que durou aproximadamente entre o final do século XII e 1868, quando a revolução da Restauração Meiji devolveu o controle político e militar do país ao Imperador. Formando uma casta guerreira, os samurais possuíam bens, propriedades e tinham o direito de possuir um sobrenome, ou seja, um nome de família que permitisse transmitir seus bens a seus descendentes. Os plebeus, as pessoas comuns do povo, não tinham direito a um sobrenome até meados de 1870.
Oriundos de famílias nobres, disciplinados e treinados para as artes da guerra desde tenra idade, os samurais possuíam diferentes códigos de honra, conforme o feudo ou região. Em tempos de paz, e após terem sido extintos enquanto classe guerreira, o Bushidô foi reconhecido como tendo sete grandes virtudes:
Gi (leia "gui") ~ 義 - Senso de justiça e moral, razão, firmeza
Yuu ~ 勇 - Coragem, bravura, heroísmo
Jin (leia "din") ~ 仁 - Compaixão, benevolência
Rei (leia com "r" fechado, como em "areia") ~ 礼 - Polidez, cortesia, respeito, gentileza
Makoto ~ 誠 - Sinceridade, busca da verdade
Meiyô ~ 誉 - Honra, glória
Chuu (leia "tchuu") ~ 忠 - Dever, obediência, lealdade
Segundo vários autores, há um oitavo item que nem sempre era registrado:
Jisei (leia "dissei") ~ 自制 - Autocontrole, serenidade
Conforme dito, não existia um único Bushidô e uso do termo não era generalizado. Além disso, cada feudo possuía suas próprias regras e códigos, transmitidos por tradição oral, apesar da lealdade ao Daimyô (senhor feudal) ser algo comum e obrigatório a todos. Já os senhores feudais deviam obediência ao Shogun, o governante militar que exercia as funções de Governo, enquanto o Imperador era mais um símbolo cultural e de identidade nacional do que um poder efetivo. Mais ou menos como acontece desde o final da Segunda Guerra Mundial, com a diferença de que hoje o Japão é governado por um regime parlamentarista. Na época dos samurais, os shoguns eram ditadores militares nomeados pelo Imperador, que acabou se tornando refém do regime, tanto que foi necessária uma guerra para retomar o controle do país.

Algo importante a se diferenciar é o livro chamado Bushidô - A Alma do Japão, e o Bushidô como o código de honra propriamente dito. Que, é importante frisar, não existiu como sistema único na era dos samurais e seus princípios gerais nunca foram praticados com unanimidade, conforme veremos mais à frente.
O livro é de autoria de Inazô Nitobe (1862~1933), um intelectual japonês de orientação iluminista, com vasta cultura e erudição, que escreveu a obra originalmente em inglês, pensando em apresentar de modo edificante a cultura de seu país perante a comunidade internacional.
Nitobe formou-se engenheiro agrônomo, tendo sido também diplomata, escritor e cientista político. Viveu por anos nos EUA e casou-se com uma americana que conheceu uma comunidade Quaker, de orientação protestante. O próprio Nitobe era um cristão protestante, batizado na igreja Metodista Episcopal. O único filho do casal morreu ainda na infância, e eles criaram dois filhos adotivos.
Nitobe inspirou-se nos códigos de cavalaria europeus, para criar uma aproximação com grande parcela dos leitores. Em suas páginas, o autor faz numerosas citações de filósofos ocidentais, sempre buscando mostrar um Bushidô como sendo um compêndio de sabedoria mundial, ou algo naturalmente alinhado a valores ocidentais. Visto dentro de seu contexto histórico ao ser publicado, o livro Bushido - The Soul of Japan é também uma peça de propaganda, que certamente teve efeitos benéficos na percepção ocidental sobre o Japão.
A História, porém, se encarrega de mostrar que não era bem assim como o autor afirma. O livro fala muito sobre "misericórdia" como uma virtude samurai, mas uma pequena lembrança sobre a perseguição aos cristãos nos séculos XVI e XVII escancara a dura realidade: a lealdade estava acima da misericórdia, do senso de justiça e da cortesia. A mando de seus senhores, samurais decapitaram e queimaram famílias inteiras que se revelassem cristãos, incluindo mulheres, crianças e idosos.
A despeito de célebres samurais e daimyos que se converteram ao catolicismo e morreram martirizados, a esmagadora maioria seguiu as ordens do Shogun e perseguiu, torturou e matou milhares de inocentes.

Em uma de suas passagens mais emblemáticas, o autor conta uma trágica história que, para ele, demonstra que a lealdade a seu senhor ou a seu país é como a lealdade a Deus pregada na Bíblia, mesmo que custe a vida de um filho. Em outra passagem, cita o imperativo categórico do filósofo alemão Immanuel Kant (1724~1804), para justificar que toda ação deve ser moral e baseada em princípios universais. Uma vez atingido o conceito de que o fim seria benéfico, os meios passam a ser válidos.
Toda a obra é recheada de citações, colocadas sempre de modo a justificar a cultura samurai - e toda a cultura japonesa, por analogia - perante o Ocidente, afirmando ser essa a base moral e espiritual do povo japonês.
Samurais, apesar de seus códigos pregarem uma conduta de respeito e parcimônia, frequentemente tinham entre os seus aqueles que abusavam de sua condição social superior. Não se podia desacatar um samurai, ou encarar um com raiva ou desobediência, sob o risco de ser retalhado na mesma hora e à vista de todos. Os baixos instintos também não eram controlados por todos, e isso era algo temido pelos plebeus que zelavam por suas filhas e esposas.

No clássico filme Os Sete Samurais (1954), Akira Kurosawa mostra conhecimento sobre esse lado que fez parte da classe samurai ser temida por pessoas comuns. Apesar dos samurais altruístas que se reúnem sob a liderança de Kanbei Shimada para proteger uma aldeia indefesa contra bandoleiros, alguns temiam ter samurais vivendo entre eles.
O medo de samurais foi bem demonstrado por um dos moradores que, temendo que sua bela filha fosse estuprada, disfarçou ela de homem, cortando seu longo cabelo à força e fazendo ela usar trajes masculinos. Fossem os samurais pederastas sodomitas em sua totalidade, conforme dito por certos YouTubers, que afirmam que todo samurai era homossexual e tinha relações a qualquer hora do dia (até no meio da rua), disfarçar uma garota de garoto não teria efeito algum.
Apesar dos temores, os sete guerreiros - cinco samurais de fato, um aprendiz e um andarilho - se mostram virtuosos e heroicos em sua missão. O filme retrata a luta de homens valorosos, mas cientes de que nem todos os samurais eram admiráveis, como faz crer o livro que apresentou o Japão ao mundo. Nitobe Inazô também fala em seu livro sobre a condição da mulher no Japão, sobre ideais de igualdade e sobre a ternura que lhe despertava o amor romântico existente em certas relações de amizade entre um homem e outro, não deixando dúvidas de que ele era um autor bastante progressista e liberal. Isso ao mesmo tempo em que procurava amparar as tradições japonesas em sentimentos universais para torná-las mais familiares aos ocidentais.

Sobre a virtude da misericórdia, o clássico mangá Lobo Solitário (1970) tem um começo bastante revelador. Apresentado como o executor oficial do Shogun, o samurai Itto Ogami se prepara para realizar a decapitação de uma criança, capturada de um clã derrotado e exterminado. Ele dedicou palavras de misericórdia para com a criança antes de lhe aplicar o golpe fatal. Itto Ogami era implacável, vingativo e impiedoso, mas também era honrado, generoso e sábio. Um personagem complexo e fascinante, em um contexto sombrio e violento.
Fosse justa ou injusta, benevolente ou cruel, a ordem recebida, o samurai deveria ser obediente ao seu mestre, sem hesitar ou questionar. Esse era o mundo violento em que viviam os samurais, e decapitar uma criança é algo tão hediondo que jamais poderia estar no campo de tarefas de um guerreiro da justiça, que é como alguns imaginam que eram os samurais. Havia coragem e nobreza, mas também frieza e brutalidade impiedosa em uma sociedade de castas. Atos de traição e corrupção também foram registrados ao longo dos tempos, seja em narrativas escritas ou orais. Se o modelo idealizado era belo, os samurais em geral eram seres humanos passíveis de falhas como qualquer pessoa.

Sobre a questão da lealdade ao seu mestre, traduzida por obediência, há o mangá Samurai X - Rurouni Kenshin, que conta a história de Kenshi Himura, um ex-samurai, outrora conhecido como Battousai, o Retalhador, que busca uma vida tranquila e a proteção dos mais fracos. Sua espada tem o fio de corte do lado invertido, e ele evita o derramamento de sangue.
Kenshin carrega a culpa das muitas mortes que causou servindo ao Shogunato, entendendo que ninguém tem o direito de matar, exceto se for para proteger inocentes. Ele sabe que matou muita gente na guerra e no cumprimento de missões, tudo por que seguia ordens sem questionar. Se ele estava apenas cumprindo o Bushidô, não deveria haver espaço para remorso, mas ele enxergou além.
Samurais, em última análise, eram guerreiros profissionais treinados, serviam a senhores feudais e eram temidos por suas habilidades, desenvolvidas com muita disciplina. Seus códigos de honra, agrupados pelo nome geral de Bushidô, traziam inspirações vindas das religiões predominantes do país, que são até hoje o Budismo e o Xintoísmo.
No campo filosófico, traziam influências do Confucionismo e do Taoísmo, principalmente. Os samurais e seus senhores que se converteram durante o século XVI também incorporaram elementos do Cristianismo, enxergando uma convergência de valores em vários pontos.
Traduzido para o japonês e usado como propaganda da imagem do Japão perante o Ocidente, o livro Bushidô também serviu à propaganda interna, ao ser traduzido para o japonês e promovido pelo governo.
Defendendo a lealdade a seu país acima de tudo, ajudou o processo de militarização do Japão, com a ideia, disseminada mundo afora, de uma "nação de samurais". E isso apesar do autor Inazô Nitobe ter sido um pacifista convicto, e um dos signatários da extinta Liga das Nações, entidade supranacional fundada em 1916 e substituída pela ONU em 1946.
O Bushidô nos tempos modernos
Em tempos recentes, o Bushidô foi bastante usado por coaches para treinamento e motivação no mundo corporativo. A despeito do modelo de valores perenes e universais condensados na narrativa do livro Bushidô, levar suas regras ao mundo dos negócios, tendo em vista prosperidade profissional, não deixa de ser uma distorção movida a dinheiro e ambição.
Assim como o conceito japonês de Ikigai, seu uso como discurso motivacional é um reducionismo e uma instrumentalização de ideias que precedem o mundo corporativo e precisam ser esvaziadas de profundidade para virarem fórmulas que supostamente atraem sucesso profissional e financeiro.
Visto com a devida perspectiva histórica e política, o Bushidô ainda é um fascinante conjunto de valores éticos e morais que encontram eco em todas as boas obras de ficção escritas no Japão.
Baixe aqui:
Versão PDF da edição em inglês de 1905.
Confira também:
Artes Marciais - Série em 3 partes com Evandro Pontes no Bacon Podcast
ESPALHE CULTURA POP JAPONESA: Indique postagens do Sushi POP a seus contatos nas redes sociais!
APOIO FINANCEIRO:
Também é possível doar qualquer valor para o autor, como forma de incentivo ao trabalho de décadas feito em prol da cultura pop japonesa no Brasil, através do PIX: nagado@gmail.com
LINKS RECOMENDADOS: