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Sobre críticos e a cultura pop japonesa

Quando má vontade e desconhecimento sobre um assunto produzem grandes bobagens.

O quê Gamera, Capitão Harlock e Changeman têm em comum? Todos já foram desprezados por críticos brasileiros.

Durante recente live no Canal Túnel do Tempo TV, que abordou a grande mania dos super-heróis japoneses com a exibição de Jaspion e Changeman na extinta TV Manchete em 1988, eu relembrei várias coisas sobre aquela época. Falamos sobre a reação da mídia brasileira ao ter contato com os extravagantes super-heróis de tokusatsu naqueles dias.


A grande imprensa, em geral, tratou as séries como ruindades absurdas. Um grande veículo de imprensa na época deu o seguinte título a uma reportagem: Changeman: Tão ruim que é uma maravilha!”. O texto dizia que tudo em Changeman era tão ridículo, que virava uma comédia trash, algo que deveria ser visto para gargalhar pelo que era mostrado. Só que muitas histórias eram trágicas, com aquele senso de drama solene tão próprio de narrativas japonesas. Como rir do episódio do cavalo Pégasus ou do famoso duelo mortal entre Change Dragon e o Pirata Buba?


Esse e outros textos tratavam tudo como galhofa, apontando os efeitos especiais ridículos (comparados injustamente com filmes de Hollywood), a interpretação caricata e a total falta de sentido dos roteiros. Que, vale lembrar, eram pura diversão para crianças e pré-adolescentes.


Não creio que uma obra só possa ser julgada por seu público-alvo e por critérios de sucesso, mas tentar olhar uma série infantil criada em outro país, para uma faixa de público bem definida, e analisar com os olhos de um adulto avaliando alta cultura me soa um tanto esnobe e mesmo anacrônico.

Capitão Harlock: Um exemplo de homem que trilha seu próprio caminho.

Ainda sobre aquela década de 80, lembro de um review publicado em um guia de vídeo falando sobre o longa em animê Capitão Harlock e a Nave Arcádia ("Waga Seishun no Arcadia", 1982), filme dirigido por Tomoharu Katsumata baseado em mangá de Leiji Matsumoto (1938~2023). O crítico dizia que Harlock era mais um “desenho do tipo que as crianças, infelizmente, estão acostumadas” e completava que era como He-Man, Thundercats e outros, com lutas sem sentido de personagens em busca do poder absoluto.


O Capitão Harlock, um dos personagens mais icônicos de Leiji Matsumoto, é um pirata espacial, um homem que não aceitou se render ao sistema autoritário e violento que invadiu a Terra e partiu para as estrelas, sendo caçado como um criminoso. É uma aventura poderosa e dramática sobre liberdade, honra e dignidade.


Claro que o cidadão sequer tinha assistido Harlock, talvez tenha visto uns trechos; mas não entendeu nada e julgou que era tudo sem sentido, algo que só um idiota ou uma criança de 5 anos poderiam ver com algum interesse. Críticas assim eram comuns, sempre foram e ainda existem aos montes, em diferentes setores da mídia. Vale lembrar que havia, sim críticas positivas em alguns veículos, mas no mainstream em geral, a má vontade era evidente.


Agora, vamos retroceder mais ainda no tempo, e quero mostrar um recorte de jornal enviado a mim por um amigo, com uma antiga resenha:

Transcrição: "Na luta contra seu maior inimigo, a poluição, os japoneses recorrem a todos os meios possíveis - desde violentas manifestações contra a proliferação de indústrias nos centros urbanos até indolentes filmes de ficção científica, de caráter pseudo-educativo e qualidade duvidosa. Por não atacarem fortemente o problema, tanto um como outro meio se revelaram até agora inoperantes ante a inquietadora ofensiva da contaminação atmosférica e marinha. E se a questão continuar sendo encarada sob o prisma infantil com que nos é apresentada neste ridículo Zigrah, o Terror do Planeta (Gamerah tai Jigura), certamente levará muito tempo até que se leve a sério a ameaça da poluição. Neste sentido, se não houver uma mudança, a colaboração do cinema japonês, em vez de ser positiva, tende a tornar-se perniciosa, inconveniente.


Na sua concepção, Zigrah, o Terror do Planeta, tinha até bons propósitos, pois, segundo comenta um biólogo no começo da fita, se pretendia advertir as crianças - e, por tabela, os adultos - sobre os perigos da contaminação dos mares, que formam setenta por cento da Terra. Entretanto, para mostrar cinematograficamente essa advertência, o diretor Noriaki Yuasa lança mão de efeitos típicos de seriados de televisão - que é o que, na realidade, o filme pretende ser. Além dos efeitos, que compreendem uma história e uma narrativa do nível de qualquer criança de cinco anos convocou-se também um monstro popular no vídeo japonês: Gamerah, uma tartaruga atômica, que rebola para derrotar um tubarão surgido dos espaços intergaláticos. Pode ser que tudo isso - os efeitos e as mensagens - cause boas gargalhadas (pelo absurdo e pelo ridículo), mas dificilmente terá alguma importância como elemento de esclarecimento na luta contra a poluição." - José Carlos Monteiro


O texto acima trata-se de uma pequena crítica publicada no jornal O Globo em 27 de janeiro de 1972, para comentar o lançamento em alguns cinemas brasileiros do filme Zigra, o Terror do Planeta, a versão em português de Gamera tai Shinkai Kaiju Zigura (1971). O autor do texto, bastante respeitado, apontava a qualidade ruim da produção (que não era boa mesmo) e destacava o tema da poluição ambiental; que é tema central do longa, criticando sua visão fantasiosa, que não aborda a questão com realismo e "não ataca fortemente o problema". Bom, vamos a algumas considerações:

Gamera vs Zigra, exibido no Brasil em 1972.

Primeiro, lembraria que o Cinema é, basicamente, entretenimento. Ele pode abordar problemas sociais de modo realista ou fantasioso, pode usar metáforas ou apontar questões sociais urgentes de forma direta (como no filme O Som da Liberdade), mas não tem obrigação alguma de apontar soluções. Aliás, o profissional de mídia cuja responsabilidade, em tese, é apurar, investigar e mostrar a realidade, alimentando o debate público, é o jornalista. O cineasta faz filmes, cria entretenimento. Sabemos que isso não acontece e nem nunca aconteceu de forma plena e isenta no mundo real, mas estou falando de atribuições por definição de função.


Querer que um filme com monstros gigantes (e mais fantasia do que ficção científica) aponte as raízes de um problema do mundo real é querer que um diretor de cinema faça o trabalho de um jornalista. Mas, vamos analisar o contexto de tudo o que foi apresentado.


O crítico acerta ao apontar a poluição como grande inimigo dos japoneses e citar manifestações violentas. O final dos anos 1960 viu diversos protestos contra a poluição eclodirem no Japão. Dejetos industriais jogados em rios, contaminando água e alimentos; mais a poluição desenfreada jogada no ar, geraram casos de bebês com deformações e doenças graves se espalhando, de câncer a problemas respiratórios.


Para piorar, alguns industriais contratavam mafiosos para se infiltrar em assembleias de associações de moradores de cidades afetadas, causando tumulto para tentar dispersar os movimentos. Isso só piorou as coisas e as reportagens e manifestações explodiram pelo país.

Spectreman: Um herói contra os monstros da poluição.

Isso se espalhou pela produção cultural, com filmes, mangás e séries abordando a questão da poluição. O filme Godzilla vs Hedorah e a série Spectreman, ambas de 1971, são apenas dois exemplos do tema da poluição sendo usado como elemento das histórias sobre monstros que ameaçam a humanidade.


Com ampla cobertura em noticiários e com presença constante em filmes e séries, o combate à poluição entrou no imaginário popular, ajudando a pressionar a Dieta (o Congresso Japonês) a votar leis severas que obrigaram as indústrias a desenvolver e instalar filtros de poluição, bem como a controlar melhor o descarte de resíduos. Como resultado, o Japão passou por uma melhora significativa de qualidade de ar e água.


Em 1972, data do texto publicado, as coisas ainda estavam se desenrolando no Japão, e não apenas no campo audiovisual, mas no debate político. O crítico de O Globo atribuiu uma “visão infantil” estendida ao próprio Japão enquanto nação, complementando que sem uma visão mais forte, o cinema japonês se tornaria uma colaboração “perniciosa, inconveniente”. O crítico estava atribuindo o ato de produzir filmes "fora da realidade" sobre poluição como se esta fosse a única coisa acontecendo no Japão (além de protestos violentos) para enfrentar o problema real. Isso é de uma bobagem indefensável, para quem acha que “antigamente é que se fazia bom jornalismo”.

Aqui, outro recorte de jornal, de 31 de janeiro de 1960, sobre o filme O Monstro da Bomba H (“The H Man”, de 1958), também exibido no Brasil. Em um texto bem curto, o crítico já começa tratando o primeiro e mais clássico filme de Godzilla (1954) como uma obra de má qualidade. Sobre o filme analisado em si, o crítico se resume a fazer uma ironia com o tema nuclear utilizado, ao dizer “Quem nos garante que os japoneses tenham posto no mesmo plano cinematográfico que seus samurais a ciência que americanos e russos aprenderam com os alemães?” É uma alusão, claro, à tecnologia atômica, tão temida nos tempos da Guerra Fria entre EUA e URSS.


É difícil até listar o tamanho enorme de bobagens cometidas em um texto tão curto, mas ele é emblemático de uma categoria que existe até hoje: O crítico cultural que só enxerga seu umbigo, ainda que carregado de grande e inegável bagagem cultural em outros assuntos.

The H Man: Terror policial com tema nuclear.

Pode ser um especialista em qualquer segmento, pode ser um acadêmico cheio de diplomas e títulos, mas se não tiver senso de proporções e noção de contexto, cometerá muitos erros. Irá analisar segundo seu prisma atual, pessoal e regional; algo feito em outro momento histórico, em outro local, para outro tipo de público-alvo que não ele, em um contexto totalmente diferente. Poderá julgar a política de outro país com base no que ele vivencia em seu próprio, irá interpretar tudo de forma equivocada, chegando a atribuir incapacidade realizadora a autores de obras que ele não compreende.


É claro que críticos e jornalistas com má vontade, preconceitos e visão distorcida sobre o que se propõem a analisar, existem no mundo todo, em toda parte. Mas, talvez não seja um equívoco apontar que produções japonesas de animê e tokusatsu estejam entre as peças de entretenimento mais passíveis de críticas destrutivas das mais descabidas por parte de gente desinformada, mas profundamente convicta das bobagens que fala.


No fim, esses críticos do passado estão no mesmo nível que os atuais youtubers, coaches e influenciadores que demonizam desenhos animados japoneses e assustam pais preocupados com sua má influência. Eles acabam reduzindo uma vasta e antiga produção cultural, cheia de bons e virtuosos exemplos, a uma combinação grosseira de satanismo, pornografia e degeneração que existem mesmo em várias obras, mas não no todo como querem fazer crer. Tudo para venderem sua autoridade em forma de cursos e mentoria para ensinar pais a combaterem os animês, ganhando dinheiro, curtidas e engajamento em redes sociais.


Entre os sensacionalistas de hoje e os esnobes de ontem e sempre, um traço em comum: Falam sobre o que não conhecem e nem entendem (mas acreditam saber), em uma pura manifestação do Efeito Dunning-Kruger.


Sua ignorância sobre um determinado assunto os impede de reconhecer o quão pouco sabem e agem como "especialistas" em algo que olharam superficialmente. Nenhum desses críticos jamais achou que aquelas produções japonesas que tanto desprezavam eram algo que tinha alguma consistência, uma inteligência por trás ou que tinham uma história que valia a pena ser conhecida.


Ao menos, os críticos do passado tinham um elemento atenuante em suas manifestações, se comparados aos influenciadores de hoje: Suas tolices não desencadeavam efeito algum.



- Agradecimentos ao amigo Jamil (Livre Pensador)..


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