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Ale Nagado

Transumanismo, Vida Artificial e os Heróis Japoneses

Séries que abordaram delicadas questões ligadas à fusão entre homens e máquinas e à busca pela vida artificial eterna.

Astro Boy: Um robô humanizado.

Alta tecnologia sendo usada para expandir os limites dos seres humanos é uma definição básica para o Transumanismo, um movimento filosófico e intelectual que busca sobrepujar a evolução natural. Para isso, pode estar próximo o uso de implantes de nanotecnologia para integrar homens e máquinas e aumentar capacidades naturais.


Apesar de muitos apontarem para os perigos da Ciência sem ética, nada parece impedir o avanço rumo a experimentos que antes faziam parte da ficção científica. Em grande parte, graças ao empenho de pessoas como o bilionário empreendedor Elon Musk ou o professor e intelectual Yuval Noah Harari, consultor do poderoso Fórum Econômico Mundial, entidade acostumada a ditar normas na economia e na engenharia social, uma força capaz de transformar nações inteiras para atingir seus objetivos, custe o que custar.


Não se trata "apenas" de viver mais e melhor. Mais do que isso, alguns pensadores transumanistas são categóricos em afirmar que um dos objetivos é a imortalidade no plano físico, abandonando toda e qualquer crença em uma existência espiritual, transcendental. É algo que vai além da ideia do "super-homem" do filósofo Friedrich Nietzsche (1844~1900).


Grosso modo, diversos teóricos do transumanismo acreditam que a Ciência está próxima de transferir mentes com suas personalidades (ou seja, com a singularidade de uma pessoa específica) para ambientes virtuais ou para um corpo jovem clonado ou, ainda, para um corpo mecânico especialmente construído.


Aqui, vale uma observação importante: Usei propositalmente o termo "singularidade" em seu sentido original para enfatizar que, no presente momento, Singularidade é o nome do estágio no qual a Inteligência Artificial poderá chegar quando superar totalmente os seres humanos e conquistarem uma real consciência autônoma. Esta é uma questão que anda lado a lado com o transumanismo e carrega uma aura de culto à tecnologia em nível quase religioso. Vislumbrando um sentido messiânico em seus atos, muitos parecem não se importar com o fato de que isso envolve, sim, maiores disparidades entre ricos e pobres e uma visão eugenista da sociedade.


Muitos transumanistas também defendem que a "real" vida eterna se aproxima e que grandes revoluções estão para acontecer. A ideia não é nova e nem inofensiva, no sentido de ser algo que apenas causaria encanto e inspiraria a busca por um futuro melhor.

Transumanismo: O Homem deixando sua humanidade para trás.

Em 1923, conceitos básicos do transumanismo surgiram no livro Daedalus: Science and Future, de J.B.S. Haldane. O autor teorizou sobre questões éticas e de confronto à religiosidade cristã, pois a busca pela imortalidade exigiria rupturas severas na visão de uma existência física limitada que prepara o espírito para uma vida eterna. O pensamento se aloja no conjunto de ideias dos pensadores humanistas, que acreditam na racionalidade e rejeitam visões espiritualistas na formação dos valores de uma sociedade.


O Humanismo é uma filosofia moral que coloca o Homem (e não mais Deus) no centro da existência e faz dele medida de todas as coisas. Simplificando bastante, isso abriu caminho para a visão ateísta que desemboca no transumanismo debatido atualmente.


Diferente de pensadores ateus que aceitam a morte como o fim e não esperam que exista qualquer tipo de consciência após o falecimento, os transumanistas temem a morte, e lutam contra o tempo para conseguir a imortalidade dentro de seus próprios termos.


Temas assim permeiam a ficção científica há tempos. Não é o objetivo deste ensaio enveredar pela história da literatura de ficção científica ou na cultura pop em geral, ou mesmo aprofundar questões complexas que englobam filosofia, teologia e ética. Mantendo o foco deste blog na cultura pop japonesa, vamos conferir alguns casos em que o entretenimento abordou questões que fazem parte dos conceitos modernos de transumanismo, em busca de reflexões e ponderações sobre o tema.

Astro Boy

Um dos personagens mais icônicos de Osamu Tezuka (1928~1989), é seu Tetsuwan Atom, conhecido no ocidente como Astro Boy, um dos maiores sucessos da história do animê. No mangá original de 1952, é apresentada a história do pequeno robô de aparência infantil Atom, criado pelo cientista Dr. Tenma à imagem de seu filho único, morto em um acidente de carro.


Mesmo com a semelhança física e tentando educar o robô da mesma forma, logo fica claro que Atom é um ser com individualidade, que jamais poderia substituir a criança falecida, no máximo imitar seus trejeitos. O criador, então, abandona sua criação, que passa por duras provações e amadurece, tornando-se um grande herói. No sentido como é usado pelos entusiastas da tecnologia pode-se dizer que o Astro Boy atingiu a Singularidade perfeita. Mas é uma visão romântica, e nem sempre o possível na ficção científica é realizável no mundo real, nem sempre a ficção antecipa o futuro.

O Menino Biônico

Uma outra obra de Tezuka traz uma abordagem para a questão da identidade humana através de uma gradual substituição de partes do corpo por máquinas. O Menino Biônico (1977), fortemente calcado no Astro Boy, era Jet Marte, um robô criado para proteger o Japão com seus poderes. No episódio 12, ele encontra o arrogante agente especial Jean Bond, que se gaba de seu poderoso corpo biônico.


Apesar da maior parte do corpo ser de próteses mecânicas de grande força, ele tem a cabeça como a única parte de carne e osso de seu corpo. Assim, ele se considera humano e, portanto, superior a Jet Marte, que ele vê como um mero robô programado.


No entanto, em uma missão perigosa, ele é severamente ferido e sua cabeça é, enfim substituída por uma cabeça de robô, com um cérebro artificial que reproduz o original. Ele se torna mais humilde e passa a se ver como um robô completo, assim como Marte. Sua auto-imagem e noção de identidade estavam ligadas ao que ele tinha de corpo natural. Ele deixou de ser um humano, e não achou isso ruim. Jet Marte, por outro lado, era uma máquina extremamente humanizada, capaz de chorar e arriscar sua própria existência para proteger pessoas em perigo.


Novamente, uma vida artificial capaz de atingir um grau de humanidade elevado. E há o contrário também, com seres humanos sendo privados de sua humanidade ao se tornarem como máquinas.

Kamen Rider

O aclamado autor Shotaro Ishinomori (1938~1998) trabalhou muito em sua carreira o conceito de "homem reconstruído", ou ciborgue, bem como a ideia dos perigos do uso da Ciência em favor de projetos totalitários de controle social.


Tais personagens são sempre heróis trágicos, que lamentam a perda da humanidade e de uma vida normal, dedicando suas vidas a destruir os responsáveis que os privaram de serem humanos. Como no seriado e no mangá do Kamen Rider original (1971), onde o jovem cientista Takeshi Hongo é transformado em um ciborgue poderoso a serviço da organização secreta Shocker, mas consegue escapar antes de sofrer lavagem cerebral.


Ele se torna um guerreiro da liberdade, lutando contra o grupo Shocker, que deseja ver a sociedade organizada e controlada ao extremo por um super computador, uma tecnocracia científica e sombria. O tema da ciência usada por grupos interessados em controlar a humanidade é um tema recorrente, não apenas na obra de Ishinomori, mas de vários outros autores japoneses.

Galaxy Express 999

Em Galaxy Express 999, criação de Leiji Matsumoto (1938~2023), o garoto Tetsuro Hoshino viaja a planetas distantes a bordo de um trem espacial. Surgida como mangá em 1977, ganhou várias e aclamadas versões em animê, com destaque para um excelente longa-metragem de 1979.


O objetivo de Tetsuro é vingar a morte de sua mãe, assassinada em uma cruel caçada humana. Para isso, ele pretende conseguir comprar um corpo cibernético para transferir sua mente e assim se igualar em força ao ciborgue que assassinou sua mãe e guardou o corpo como troféu.


Quando Tetsuro chega a um planeta que realiza as operações, tem uma experiência devastadora ao ver milhares de corpos preservados em gelo. Todos eram de pessoas com graves doenças que, em busca de imortalidade, pagaram para que suas mentes fossem transferidas para corpos robóticos. Os robôs têm as memórias dos humanos originais, e aparentemente são as mesmas pessoas, mas os corpos são preservados, pois todos têm medo de que algo aconteça caso o corpo original seja destruído. Medo de que a alma estivesse presa ao corpo de carne e osso, talvez, o que leva a questão a um campo religioso, metafísico.

Metalder - O Homem Máquina

Já em 1987, o seriado tokusatsu Metalder - O Homem Máquina (da Toei Company) apresentou Hideki Kondo, um poderoso robô de batalha cuja forma humana e padrões cerebrais foram modelados à partir de Tatsuo, filho do cientista Dr. Koga, que havia morrido durante a Segunda Guerra Mundial.


Ao despertar para o mundo, Metalder se vê confuso e de início não vê propósito em sua criação, até perceber a ameaça do Império Neroz e luta para destruí-lo. Hideki sabe tocar trumpete, exatamente como o falecido filho de seu criador, mas é claramente alguém com identidade própria. Em momento algum, ele se imagina como sendo Tatsuo Koga vivendo em um novo corpo. E isso leva a uma das questões que podem ser levantadas pelos críticos do transumanismo.


Um robô, andróide ou mesmo um corpo biológico clonado que tenha um cérebro programado com memórias e padrões de comportamento de uma pessoas, irá se ver como essa pessoa? Se for programado, sim, mas em que medida se poderá saber se é a mesma pessoa ou um simulacro, uma imitação artificial programada para acreditar ser a pessoa original?

A imortalidade almejada pelo transumanismo esconde um medo profundo?

Pessoas com uma visão ateísta e meramente materialista podem até não se importar com as questões de identidade, preferindo falar sempre em questões técnicas que possam levar a uma certeza apodítica, isto é, possível de ser verificada e provada. Porém, não se vê grandes financiadores ou entusiastas de tecnologias transumanistas se anunciando como cobaias. Acreditam no que fazem, mas não vão colocar a mão no fogo, ainda mais quando a ideia de segurança vem de relatórios baseados em simulações de computador. Que, como se sabe, dependem dos dados carregados (ou omitidos), e é aí que as grandes manipulações da Ciência podem acontecer. Entre as certezas anunciadas e as dúvidas que corroem a alma, podem existir abismos aterradores.


Como se a questão não fosse suficientemente complexa e perigosa em vários aspectos, toda essa questão se mistura, inevitavelmente, às muitas implicações sociais e econômicas que explodiram neste ano com o advento da Inteligência Artificial utilizada em larga escala.


O processo de elevação da Ciência à condição de religião absoluta, cheia de certezas; sem debates abertos, movida à racionalização da vida e relativização de conceitos morais e religiosos, parece ter vindo para ficar. E quanto mais se avança na tecnologia, mais as pessoas com verdadeira e embasada fé cristã percebem que muitos homens poderosos e gananciosos querem ser Deus, em um avanço inexorável rumo a consequências que podem ser devastadoras.


Os entusiastas dizem que o transumanismo irá gerar um novo tipo de ser, o "pós-humano", apenas teorizando um mundo de maravilhas, sem nenhum vislumbre do transcendental. Será mesmo?


Uma antiga anedota diz que não existem ateus num avião que está caindo. Será esse o terror que se instala nas mentes dos que buscam "salvação" na tecnologia? Para substituir as ideias decorrentes da crença no Deus único, todo-poderoso e verdadeiro, querem criar e implementar sua própria noção de vida eterna? Por temer, mais que a não-existência, o castigo eterno por seus repetidos erros e pecados, ficando eternamente "vivo"?


No fim, talvez o otimismo de muitos acerca do sucesso do transumanismo seja muito mais uma crença alimentada pelo medo da morte, gerando uma busca desenfreada por se eternizar em seus próprios termos. Porém, uma existência eterna neste mundo corrompido pode ser, afinal de contas, uma perfeita definição de Inferno.



[Nota: Por questões de segurança jurídica, este blog não permite comentários.]


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